Avançar para o conteúdo principal

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - O HIDROAVIÃO DA PAN AM



    




A ligação transatlântica América do Norte-Europa, quase à velocidade de um pestanejo. São tempos de guerra, a Companhia interrompeu a ligação para o Reino Unido. Decidiu-se por Lisboa, por ser neutra, de boas relações com todos, o novo ponto  de chegada ao velho continente. Desembarcados do hidroavião que amara no mar da palha, seguem depois para os seus destinos finais. Construiu-se um aeroporto na Portela, em terra firme, onde outros  aviões que não têm uma grande autonomia, transportam os passageiros das américas para as outras cidades europeias.

No dia de Deus, dos grandes milagres, e de descanso dos mortais, dia preferido da semana, o grande avião amara no Tejo, e os basbaques , muitos, amontoam-se nas margens do rio para assistir de queixo caído, espantados, exactamente com a mesma reacção dos indígenas no dia longínquo em que homens brancos vindos em grandes naves marítimas, chegaram a praias desconhecidas para os conquistar. Pouco mudou nesse intervalo de tempo. Os homens continuam a reagir da mesma maneira. Estão ali , submissos, à espera do avião.

O “Clipper” parece uma baleia, aérea, com asas. Uma baleia voadora. É mastodôntica, bojuda, anafada - entre o bonito  e o feio - meio avião meio barco, feminina apesar de ser  avião. Com esse corpanzil, desmaneirado, de movimentações difíceis, como consegue voar e desafiar as leis da aerodinâmica? É um monstro  com um comprimento de 32,3m impulsionado por quatro potentes motores Wright GR-2600-A2 “Double Cyclone” com 1600 cavalos de potência cada um.

No seu interior, seis luxuosas cabinas, todas diferentes, alcatifadas, com confortáveis poltronas que à noite se transformam em beliches individuais. A insonorização é quase absoluta. Dizem alguns passageiros que se parece a uma pequena casa, voadora. No entanto,  quando se  vai à janela, a paisagem muda de sítio, renovada, se bem algumas vezes seja difícil distinguir uma paisagem da que lhe segue.

 Num meio marítimo - ponha-se a coisa desta forma -  num oceano, onde as ondas parecem todas ser mais ou menos iguais, andam umas atrás das outras, fazendo-o porque é assim e não de outra maneira, dizer-se que a paisagem muda, quando se olha concentradamente pela escotilha do avião vendo o mar, é uma simpatia. O que se quer realmente dizer é que cada vez que se vai à janela, o que se vê, é diferente do que se viu na última vez que se foi à janela. Há portanto um movimento qualquer que provoca uma mudança. Sendo fácil de aceitar, que neste caso a janela se encontra incrustada num avião que voa, que se movimenta numa direcção determinada superiormente, o que explica não ser fraudulento afirmar a mudança de cenário, sempre que alguém dentro do avião vai à janela. E estamos esclarecidos sobre este assunto.

 Nas viagens transatlânticas o hidroavião transporta quarenta passageiros. A tripulação são dez. A travessia leva vinte e seis horas, menos umas seis ou sete quando vem para cá. Para leste, o vento sopra mais forte. Parte de Port Washington faz duas escalas de reabastecimento, na Bermuda e nos Açores, na ilha da Horta.

A bordo o serviço é primeira classe, requintado, tenta-se satisfazer os passageiros, mesmo nos pedidos inusuais. Não se imagina quanto custará uma viagem dessas. Muito dinheiro, mas quem está no Novo Mundo, tem fortuna, todos dizem isso, é a terra das oportunidades sem fim.




Os clientes desta carreira da  “Pan Am” são espiões ou pensa-se que o são (fica muito bem que sejam espiões, acrescenta à narrativa uma aura de mistério), vedetas de cinema, não sendo é que o parecem ser, pessoas ricas que descobriram os eldorados quando emigraram para o novo continente, a história do coitadinho, que na américa resulta.

 Regressam ao fim de muito tempo para visitar os sítios de onde um dia partiram. Vêm mostrar vaidades, exibir abastança, cumprimentar afectadamente familiares e amigos que ficaram retidos no passado. distribuem pelos catraios notas de dólar. Vêm em peregrinação calcar com o tacão dos seus sapatos de duzentos ou mais dólares, o chão onde têm raízes, enterradas fundo, numa planície irlandesa, croata, ou polaca, ou italiana, de  todos os lugares da Europa velha e gasta, onde fugiram paupérrimos, pontapeados pela impossibilidade de serem dignos.

Agora estão ricos, ou fazem que estão, e vêm semear pequenas invejas, nos que não tiveram coragem nem ânimo para partir, ou simplesmente por alguma razão que só eles sabem, ficaram retidos por vontade própria.

A audiência, entretanto, está inquieta. Apinhados no cais, gritam, barafustam, gesticulam, a ansiedade da espera. Percebem-se novas movimentações, apontam-se pontas dos dedos  e de  olhos para o céu – não é milagre,  foi em 1917 -, alguns protegem os olhos da luz intensa com as mãos as formarem um aparência de pala. Ouve-se dizer – passa de boca para boca -que ele vem lá, quem vem lá? O avião da América. É aquele pontinho negro.

Agora já se vê bem, cada vez melhor, aproxima-se o “New World”, entrada triunfal, rio adentro, Prima Dona presumida, a flutuar nos ares, abanando as asas para atrair atenção, ensinando o seu bojo quase indecoroso, fazendo-se todo ele às fotografias que as retinas dos pobres captam para memória futura.

 Vem do lado do mar, corta o rio em dois, dois mundos tão diferentes e tão próximos: num o casario da cidade branca, debruçada nas colinas, sobre o rio, na outra pomares e arvoredos,  para baixo até lá baixo, quase um deserto, até que se encontra de novo o mar e gente diferente, outra.

Desce lenta, lentamente o avião,  no último momento quase a desistir de voar, deixa-se pousar nas águas tranquilas. No limite, de uma imagem forçada, lembra o cuidado de uma senhora de bem, quando se senta numa cadeira de palhinha para tomar chã e bolinhos com as amigas, no remanso do seu apartamento burguês.

No decisivo momento em que toca na água, deixa de ser avião e passa a ser barco, um híbrido, encantador. Navega agora calmamente até ao pontão de desembarque.

Acto segundo:

A tripulação atravessa a ponte flutuante de madeira com 161 metros que penetra o rio. A tripulação é impecável, na apresentação, no porte. Farda preta com vincos irrepreensíveis, galonas douradas nos punhos dos casacos, cordões de ouro engalanam bonés brancos, sem mácula. Sorriem eles à audiência. Que dentes tão brancos têm, por cá não há quem com dentes destes. A recepção popular exulta em urros e bater de mãos. Urros não, não são bestas. Excitações vocais.

 As hospedeiras altas, altíssimas, e também magras, mas de angulações mais do que evidentes, caminham sobre a ponte como se estivessem a pisar uma linha imaginária marcada no chão, uma passadeira da fama, não se desviam um milímetro do rumo , olham atentamente para a meta, habituadas que estão a  desfiles  gloriosos.




A facção masculina da audiência, piropa e assobia, tão típico, tão português, mas elas fingem que não entendem, são estrangeiras. Só fingem, porque afinal entendem muito bem as intenções.

São tão lindas, e vaporosas, as hospedeiras, apetitosamente apetecíveis, com  seus finos lenços de seda protegendo dos ventos cruzados, seus cabelos louros, penteados e armados com lacas americanas.

Agora, saem os passageiros: homens de ares inchados, fatos assertoados de bons cortes, fazendas de qualidade, e igualmente com lenços de seda, na lapela dos casacos. Saem ajeitando nas cabeças os chapéus de feltro, dos ventos cruzados que também afectam as hospedeiras.

O povo não dá conta dos ventos cruzados, distraindo, encantado, mesmerizado.  Os passageiros acendem-se longos charutos cubanos, de combustão lenta, aromáticos, exalando fumos de fumaças preguiçosas, exalam fumos como todos os poderosos exalam.

Senhores de si e do universo, pequenas majestades, pisam o mundo velho, e são recebidos pelos aborígene, boquiaberto e exultante, adoram esses novos deuses.

Cai o pano do espectáculo, baixa a realidade sobre cada um, com o último passageiro a entrar no táxi para o aeroporto. O avião fica a boiar, seguramente ancorado, já ninguém olha para ele. Amanhã é dia de trabalho, regressa o povo à miséria.

Num só dia Tertuliano viveu muita emoção. Ver pela primeira vez o Mar e um Avião, um acúmulo de deslumbramentos. Pede agora um local tranquilo para editar, fazer cortes, colar, montar, escrever um nome e uma data, antes de o arquivar na cabeça. Foi para o chalet  do primo fazer a edição do filme do dia.

Amanhã, tão cedo quando a insónia  obrigue  levantar-se da cama, vem de novo ver o mar. vai tentar ter uma conversa com ele. Antes disso acontecer, vai-se conhecer o primo. Jacques, um português que não sabia ter sangue francês, apesar de desconfiar bastante do nome que lhe deram à nascença.



Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,