Vestem escuro, vivem de negro. uma formalidade. Sorrindo e que
alguém o possa vir a saber: que sorriram, porque não testemunham o sorriso. Um
véu tapa-lhes essa possibilidade e o mundo, que queria tanto, nunca ajuizará a
pureza desse rasgar genuíno de uma boca escondida.
Praticamente só sobressaem os olhos, igualmente negros,
grandes e muito redondos e perscrutadores, azeviche, pouco mais é dado a ver.
O sinal de uma vida envolta dos pés à cabeça, em camadas de preto, por véus quasi-transparentes que sobrepostos são opacos.
E como só despontam os olhos, concentram neles toda a sua
energia, a comunicação inteira de um corpo, que quer escapar mas não pode.
Imagina-se que aquele corpo que se imagina, tem os seus ângulos, uma harmonia.
Imagina-se também que tem recônditos abrigados, outros menos. Aos olhos
exteriores do desconhecido que os observa, não têm forma, são voláteis. Corpos
fantasmagóricos, espectros à luz do dia. Corpos escondidos, entaipados,
recolhidos em si, é uma vida toda de interior, uma obrigação. Como um pátio do
sul do mundo, no âmago, no centro mais interior da casa, o espaço primordial,
escondido aos olhos de fora.
São assim as mulheres que se apresentam nas pinturas, fortes
estas e as mulheres igualmente - sem dúvida - objectos tridimensionados numa
tela. Mulheres pintadas com mão pesada, intencional, impiedosa, zangada, sem
filtro. Mão que preende os pincéis que vincam os percursos da tinta, marcando a
cor nos veios da tela que foi branca no início de todas as coisas e agora fica
marcada por esse testemunho: as mulheres do nicab.
Telas estas que no acto de serem preenchidas, violando-se,
contam histórias, ou só uma crónica, contínua, várias, a das mulheres que saem
à rua, mais vielas, envoltas num esconderijo, uma dissimulação. Nunca se saberá
da beleza ou da feiura dessas mulheres. Só dos olhos. Vidas quotidianas de um
local longínquo mesmo aqui ao lado, mas em tudo tão diferente.
São jeitos de cultura, de religião, indiscutíveis e
sensíveis.
É tão denso o mistério, que quase não controla a vontade que
outras mãos, não as do pintor, vão ao seu encontro, dos véus, para os rasgar,
não querendo nenhuma violentação senão
somente ver, credibilizar pelos olhos que aqueles corpos existem, são reais.
São corpos sem luz, desabituados da luz do dia, e da falta
da luz da noite. Corpo tapado, corpo assustadiço.
As mulheres do nicab caminham pelas ruas de terra batida e
não se dá pelo seu aparecimento nem o seu desaparecimento, deixam simplesmente
de se verem, contornaram uma esquina que não se contava, porque antes não havia
ali, fora da vista.
O olhar do pintor, captação de instantâneos, sofre de um mal
que é um bem: a curiosidade do viajante, que o leva a sair de casa. Os
sedentários saciam o tédio olhando para a sua janela, e como ela está sempre
fechada, vislumbram contornos de movimento, não vivem a realidade do movimento.
Os aventureiros, e neste caso estão os pintores, e os escritores, e os
bailarinos e todos os utópicos criadores do impalpável, precisam dos cheiros e
de andarem como saltimbancos por essas terras e localidades e espaços cheios de
nada, vazios de tudo, para saciarem a sua natureza nervosa, palpitante,
ansiosos sempre para validarem a beleza das coisas, mesmo quando são pequenamente belas, no entanto, desconcertantes.
É difícil escrever sobre estas mulheres, é assunto delicado.
Não dessa delicadeza da diplomacia, a arte de mexer no lixo com luvas brancas
de pelica. É difícil porque não se entende, não se ajeita à compreensão, é um
outro estranho mundo, que dá retratos magníficos, afinal de um preto carregado
de todas as cores.
*Série de pinturas sobre as mulheres dos véus (nicab) por Paulo Robalo disponíveis por visita na Galeria Passevite - R.Maria da Fonte - Arroios - Lisboa
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