Toda uma vida a imitá-los, a chamar a atenção, a pedir
reconhecimento. Fãs incondicionais, queriam tanto ser iguais a eles, como eles.
Tivessem os símios necessidade de um Deus mais próximo, o homem era o seu Deus.
Mas não têm, porque são quase homens e reconhecem o mesmo Deus. O que não podem
é perdoar, um perdão duplo aos homens e a Deus. Aos primeiros por não os
reconhecerem como iguais, ao segundo por não lhes ter dado o pequeno pouco em
falta para terem sido como os humanos, ainda assim falhos de perfeição.
E nem um olhar de simpatia, só gozo, divertimento. Aquelas
crianças que agora os macaqueiam do outro lado do vidro, imitam os pais, que já
nem sequer os macaqueiam, ignoram-nos. Eles conformaram-se, sabem que nunca se
sentarão na mesma mesa para conversar, nem confraternizar igualdades. Sabendo
isso, deixaram de reagir, de olhar para o outro lado do muro transparente, de
comunicar o impossível separados por uma espessura de vidro que não deixa passar
nenhuma comunicação.
Mas as crianças insistem, provocam, excitam-se. E as crianças
dos homens, como as dos símios, quando são crianças, são encantadoras.
Ainda não havia tempo para o ar dentro do tribunal estar
carregado, mas estava.
Ele colocou a voz, não será uma chamada de atenção, talvez
não tenha o hábito de falar todos os dias. Como ser que se diz ser um conceito,
terá outras formas de comunicação, sem necessidade de articular palavras com
som. Falou na língua dos homens a custo, raramente fala com eles:
- A imortalidade ainda posso reconhecer, poderia ter-vos
dado, era só um pouco mais e irrelevante. O pecado é que não. A vossa
curiosidade nunca saciada que é por vezes intromissão, queimou-vos os dedos. Ânsia doentia essa, pelo que ainda não
atingiram. Nunca estão satisfeitos.
Deus falava como um pai, e nestes casos
como nas famílias numerosas, há os filhos submissos e os rebeldes. Os últimos pateiam
o chão, os submissos benzem-se e rezam, ou parece que o fazem, introspectos em
solenidade, séria e redundante.
Continuou: - Os vossos pais primevos sabiam-no. Estavam
avisados. Poderiam ter continuado felizes eternamente. Mas não, foi a
curiosidade. Quiseram provar o doce do conhecimento das coisas, da explicação e
do entendimento. E isso não era para vós.
-Pagaram por essa ousadia. E a consciência do pecado, é o
peso dessa culpa, ou melhor, dessa transgressão, que vos vai acompanhar para
todas as gerações.
- Mas Deus, para que queríamos nós só a imortalidade sem
gozarmos do prazer do conhecimento? Como passávamos os dias, sem termos o
espanto e a seguir a clarividência das coisas?
Deus não respondeu.
Todos os dias do ano, são dois espectáculos: as onze horas e
ás quinze horas. O da manhã é para as escolas, o da tarde para adultos. Desde
que nascem até que morrem, se não houver intercâmbio com outros parques, os
golfinhos vivem rodopiando incessantemente no perímetro dos aquários, onde são
treinados por humanos para fazerem habilidades, que serão aplaudidas por um
público atónito com as capacidades destes animais que têm coisas de humanos.
Cada vez vivem menos
grandes mamíferos em liberdade, seja na terra ou no mar. Os homens arrendam
todos os pedaços de terra cada vez mais caros, e de preferência só fazem
contractos com outros homens, assim que se assiste a um êxodo nunca visto de
todas as espécies animais, para parte nenhuma, já que todas as partes da terra
estão agora sob domínio absoluto dos homens.
Os golfinhos acham os humanos uns verdadeiros idiotas e só
não o demostram porque são animais com uma boa índole. E brincalhões. Não querem ser iguais, nem parecidos a eles
por nada, nem serem vistos justos, se bem que eles humanos, andam
constantemente a tirar fotografias de grupo. Como são seres muito bem formados,
aceitam com bonomia as experiências que os humanos fazem com eles, se bem que entendam que isso é completamente descabido, no
entanto alinham no jogo.
São inteligentes, têm uma vida social complexa e intensa, têm
língua própria, e com toda a lógica, são animistas. Não insistem em colocar as suas feições em
tudo quanto acham passível de ser adorado. A sua adoração e prece é o
agradecimento, da companhia, da partilha, do usufruto do belo e do útil das
coisas. São seres alegres e sem peso.
O Polvo sempre sonhou em ser golfinho, o deus das suas preces.
O animal que mais admira, pela graciosidade, perfeição, a forma como anda nadando
flutuando, peixe não peixe bala, pelos mares. O polvo também é muito
inteligente e sabe bem que está longe de ter a beleza do golfinho. É por saber
da sua imperfeição estética, que gostaria de ser golfinho, e não o sendo,
endeusou-o. De pequenino, meio escondido meio a descoberto nas rochas,
mimetizando para não ser descoberto, e assim também não visto, desligava-se da
sua realidade, assistindo aos movimentos bailarinos dos golfinhos, acima de si,
em contraluz. Se a manifestação de Deus, acontece pela beleza das coisas belas,
os golfinhos são deuses. Assim começa o Livro sagrado dos polvos.
O elefante tinha aparentemente todas as condições para ser um
deus: inteligente, imponente, territorial, autoritário, vaidoso. É um ser que
se diz, e eles comprovam-no, ter uma sensibilidade no coração, para as coisas
da família por exemplo, superior à dos homens. Mas o elefante não é Deus
(sendo-o para os suricatas, mas não sabendo que o é) porque se embeiçou pelos
símios, esses sim, os deuses para os elefantes.
Podia-se estar aqui até à eternidade, e não se tem tempo para
isso, pelo que não se vai falar do caso das abelhas, deusas e crentes, e das
formigas, que teriam alguma coisa para acrescentar à história. O que é mais do
que certo é que se abriu a tampa e de dentro dessa caixa muito funda, estão
agora a saltar cá para fora, mil e um e muitos mais deuses, revelando afinal
que todos são os Criadores. Nem todos, os cães são só os seres mais felizes e
descomprometidos que existem, amam incondicionalmente os homens e não têm
nenhuma necessidade conhecida de os verem como deuses, bastando-lhes uma festa
e uma palavra de ânimo.
Afinal, o julgamento do Deus dos homens vai ficar na história
como a rebelião dos seres com fé. A revolta dos incompletos.
Gerou-se no mundo a desarmonia. Todos à procura de Deus e ele
escondido.
Percorrendo a escala animal, dos microscópicos – protozoários
incluídos -, os de baixo a acusarem os de cima, na escala que percorre todos os
nomes, espécies e feitios.
E anda-se nisto, enquanto o Deus dos homens fala:
- O dia do episódio da maçã proibida, marcou para mim o
inicio do alheamento de vós. Afastei-me do papel de Pai, escolhi ser um observador
distanciado.
- Porquê? Não estavas à espera que isso pudesse acontecer?
Não foi de propósito, aquela macieira, carregada de frutos luzentes, a pedirem
para serem comidos, no meio daquele deserto a que chamaste Paraíso? – Quem
disse isto foi um juíz quase anão – e por esse facto alheio à sua vontade,
ainda não se tinha dado por ele, ofuscado pelas capas negras dos seus pares
muito maiores no tamanho.
A esta, Deus também não respondeu, e os homens presentes e os
espectadores das rádios e das televisões que seguiam as notícias não
interrompendo o seu quotidiano, que não há tempo para isso, começaram a
desconfiar que se calhar nenhuma das grandes questões seria convenientemente
respondida.
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