Um tédio, escrever. Se era só para si, por que fazê-lo, se punha
e dispunha em privado desse eco na cabeça? Por que passar ao papel quando se
perde tanto na tradução do pensamento?
Deu-se conta disso, não do tédio, quando se viu - uma vidência
instantânea e sorte em tê-la -, atafulhado de coisas escritas.
Uma acumulação como outra qualquer. Não de colecionador. Um juntar sem um objectivo, nas gavetas, em
prateleiras, caixas. Para amanhã, que amanhã?
Guarda-se com medo de perder, ou então, por pudicícia, a modéstia dos
ingénuos.
No seu caso, não guarda por nenhuma razão especial a não ser o
facto incontornável – para si – de que não consegue fazer outra coisa senão
escrever, independentemente do descrédito de sentir que exerce com carácter de
regularidade diária, uma pulsão, de absoluta inutilidade.
Não a abandonar, destruindo o produto dessa promiscuídade, era
a forma airosa -coisa neutra - de se desculpar por não ter desenvolvido
habilidade para actividades manuais que o fascinavam. A carpintaria, o cheiro
da madeira e aquela coisa sensual, senão erótica, de afagar uma superfície em
madeira. Desvios.
Como não sabe fazer
mais nada, e porque o tempo que escapa das mãos tem também o despudor
travestido de dar a sensação que se desenrola numa alentejana lentidão, manuscrita
em sofrimento, o que não quer dizer que o faça descuidadamente. Escreve
honestamente com atenções de crítica pessoal, e arruma sempre a secretária no
final do dia de trabalho.
Como todos os existentes - sinal definitivo de que que
continuam vivos - tem bons e maus
momentos, alegrias e desencantos, ou seja, exerce uma actividade absolutamente
comum e normal. Na excepção de ser um homem com dúvidas, situação que mesmo num
operador de gruas em altura, complica o currículo, escrever é tão banal como
operar em ambientes causadores de vertigens.
Ele, que tem um nome que não acrescenta nada a este relato,
escreve, e nos intervalos visita museus. Visita museus de uma forma cientifica:
escolhe as horas e os dias em que considera que por probabilidade estatistica-intuitiva,
estarão desimpedidos de visitantes.
Só se pode visitar um museu com conhecimento de causa, sem
interferências de transeuntes que estão naquele momento a olhar - ou passam
constantemente à frente - para o Ecce Homo
com ar de que já estão atrasados para o próximo quadro que os vai atrasar ainda
mais para o seguinte, mas tem que ser assim, a vida é feita destas coisas que são obrigação,
mesmo em turismo de massas. Para dizer que se esteve lá e se viu. O quê? No
final, ficam com uma má impressão do Ecce
Homo, ou nenhuma.
Esgotados estes dois passatempos, ele não faz mais nada de
especial (os dois também não o são), senão comer escassamente e ouvir música de
olhos fechados, prática que ele não concebe ser praticada de outra maneira.
E depois disto, vai-se deitar e dorme pouco e sonha muito e
faz balanços atrás de balanços, de tal forma que acaba quase todos os dias, que
são ainda noites, acordado de madrugada
e aí tem mesmo que ler qualquer coisa, enfadonha e maçuda preferencialmente. Pode-se
dar o exemplo de uma qualquer e intricada filosofia, um ensaio de linguística,
ambos servem não para lhe darem mais luz, pelo contrário, para o porem ainda
mais na sombra reanimando o impulso de voltar a adormecer.
Assim vive um homem que escreve. Um tédio.
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