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PIANISTA






O pianista que toca piano no grande, alto, branco, frio, barulhento, hall do hotel, toca piano inutilmente.

Toca e mal se ouve, não se ouve. Passa gente constantemente, com pressa para entrar, ou sair, para um lado e outro, um qualquer, não interessa, muitos, apressados e faladores. A porta é giratória pelo que gira, estonteantemente. O tráfego nos elevadores é um piscar de luzes e portas a abrirem e fecharem. Acumulam-se malas, umas melhores.

Em condições normais o pianista não precisaria de tocar piano só para si. Teria audiência.

Toca, mas o automático movimento dos seus dedos mesmo que premindo teclas inexistentes no ar, em que local seja, seria suficiente para ele ouvir música, que lhe vem de dentro.

O homem que é pianista e tem um fato decente escuro e gravata formal, tudo isto inutilmente, está ali, porque o valor do gás, da electicidade,  da água cada vez mais proibitiva, não lhe dá tréguas.

Por esses motivos fortes, invisível aos olhos dos outros, toca uma belíssima sonata de Rachmaninoff, porque deve ser mesmo assim: uma música irada, também pungente, ácida, intrincada.

Estão todos surdos, não o vão ouvir. Apesar, ele toca-a para marcar a sua posição irredutível: de músico que toca piano num hall de hotel para pagar contas à vida.

Irá para casa mais aliviado por saber que pode voltar amanha a tocar para o nada, e receber por isso.

Uma vez por outra, alguém que espera eventualmente pelo parceiro para fazerem o check-out, sentado melancolicamente com as pernas cruzadas numa atitude corporal desprendida, entretêm-se a olhar para o músico e distingue naquele brua farrapos da música que ele toca. Envergonhadamente virá a esboçar um ensaio de palmas no final da actuação.  O músico sente-se agradecido o que é suficiente para o manter ali, sonhando acordado com os olhos cerrados, que está num imenso auditório que desfruta deliciadamente a execução das peças que ele toca.

É realmente um bom músico. Muitas pessoas é que já se esqueceram da necessidade fundamental que têm de escutar uma bela melodia. Muitas mesmo, porque têm grandes áreas do coração calcificado (órgão que filtra e amolece a música em fruição e sentimento) não têm nenhuma necessidade disso. São esses que vendo, não veem o homem que toca piano inutilmente.

Uma hora, todos os dias, em ponto. Depois, inala uma boa inspiração de ar puro, quando sai, e dá um espaçado passeio a pé, sem tempo contado até a sua casa. Vai pelo caminho observando e encaminhando para a memória, o alinhamento das músicas de amanhã.


Hoje a noite está mais fresca.


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