Afinal ama um homem, a mulher que lê livros sentada no jardim.
Está como se sabe imersa na leitura e por uma razão qualquer
de uma espécie de radar seu, deu conta da aproximação - para outra não poderia
ser - não espera ninguém, não o espera e por isso surpreende-se
.
Receptáculos um do outro, recebem-se abraçando-se de uma forma
profunda, demorada, os corpos a usufruírem de estarem assim, pegados, unos. No
tempo do abraço, ela manteve o livro com a página marcada.
Eram portanto três:
dois amantes e um livro.
Por este exemplo se vê o valor imaterial de um livro, que ela
não abandonou no momento em que abraçou o homem que afinal ama. Fica na sua atitude,
a gerar créditos, não foi um mecanismo involuntário, foi uma ordem lúcida
daquele, do seu, cérebro, que tem consideração pelos livros.
Sobre a forma e o estilo como eles se encontraram no jardim
pode-se dizer que foi num prolongado abraço, de olhos fechados. O que pode não
querer dizer nada, mas geralmente quando é assim, não engana. Um dos rostos, o
do homem - o dela estava na posição oposta e não era visível - espargia uma grande
quantidade de prazer, um prazer de um nível subtil, dois seres com evolução
espiritual.
O dela supõe-se que
dissesse o mesmo, com uma reduzida margem de erro porque não se vê. Passada a
juventude dos dois, as rugas a dizerem isso, são bonitos na sua idade do meio
da idade.
Abraçaram-se e de que maneira.
Ninguém reparou. Em caso de dúvida, pode-se recorrer à
videovigilância. Ninguém o fez porque
isso não é relevante. Para se perceber a desatenção, atente-se que:
Alguém conversava distraidamente enquanto comia na pressa a
escassa qualidade de uma refeição contra o tempo; uma rapariga interessante
porque na juventude de o ser, também de
olhos fechados, a afagar o seu cão preto, não por ser cega mas a absorver o
prazer do sol de outono, e as festas ao cão; um indivíduo estacionou impropriamente
uma potente moto em cima do passeio de forma estridente, a fazer-se anunciar, nem
a poluição desse acto agressivo o anunciará, mas ele está convencido do oposto
apesar de toda a gente olhar enfartadamente
para ele; os pombos estavam, estão, continuarão, ocupados a bicarem o que eles
consideram como potencial comestível. Às vezes enganam-se na apreciação, mas
não estão sozinhos.
Não se relata mais ninguém ou movimento que possa interessar
ou dar informação adicional sobre o cenário.
Passa pelo pensamento,
por passar sem consequências de maior, que este jardim tem a estranheza de ser
frequentado por desatentos. O que está errado porque não há jardins só para
esses.
A mulher que lê livros e o seu amante, desenlaçam e sentam-se,
agora dois, no beiral do jardim. Poderia ser que iniciassem uma conversa, acção
tida como estimulante , afinal o desejo
inevitável de duas pessoas quando se encontram, ao fim de uma breve ou longa
separação. Mas não. Ela flectiu o braço em tensão há algum tempo e aproximou dos
olhos defendidos com lentes progressivas, o livro suspenso, que voltou a ler e
fez bem.
Ele, enrolou um cigarro, acendeu-o, inalou a primeira fumaça –
a melhor de todas –, uma segunda já não tão boa mas ainda boa, e desleixou-se a
olhar para a amada, perfeitamente satisfeito só com isso, tanto, tudo.
O mundo não mudou.
Algumas das pessoas que comem apressadamente nos jardins
continuarão escassamente saudáveis, ou viverão ate aos noventa anos sem queixas;
a rapariga segue um bom caminho: a continuar assim vai longe, um bronzeado que
lhe dura todo o ano; os pombos, não há quem lhes dê indicações mais precisas
sobre escolhas alimentares, e não se está a ver que deixem por eles de debicar
tudo o que lhes aparece à frente.
.
As pessoas que se abraçam como estes dois e leem livros e
fumam, compensando o mal que lhes faz com o olhar amante que estendem sobre os
amados, são pessoas a quem não se presta atenção. Mas não faz mal, eles, os
amantes, passam todo o seu tempo de amantes completamente desatentos do mundo
exterior, só precisam um do outro para se insuflarem de vida, alento, anima.
E não há mais nada a dizer sobre este jardim.
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