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HOJE SENTOU-SE NO JARDIM E NÃO LEU







A mulher que lê livros no beiral que dá para o jardim, que tem um amante que já a visitou sem avisar, abraçando-a demoradamente, trocou hoje os dois por um telemóvel - parece ser, ao longe. Ainda assim, mantém o mesmo ar compenetrado e está sentada da mesma maneira: perna esguia, interessante, cruzada sobre a outra, escondida. De lado, com uma inclinação que mal se adivinha, colocando todo o ênfase do corpo no objecto da sua atenção, a precipitar-se sobre ele, exactamente do mesmo modo que faz quando tem um livro na mão.

Talvez não se possa fazer uma relação directa, pode ser um mal-entendido, mas hoje, cruzaram o jardim mais homens jovens, de fato riscado e gravata de Ministério do que é habitual. Este tipo de cidadãos, não cruzam jardins, circundam-nos, daí a estranheza e a justificação para o relato do acontecimento.

 O pequeno parque publico estava mais desagradável, uma aragem fresca que as pessoas já se tinham esquecido, sombras mais fortes, um desconforto outonal que não se via há um ano.

Não há nada a dizer sobre os jovens, a não ser que ficam melhor de calções e sorridentes, e o calor é mais simpático do que o frio, apesar de este pôr agora os ateus a rezar por ele.

Pode ser de ela não estar a ler um livro, pode ser de o telemóvel atrair outros e com eles mais jovens formais, quiçá  dos investimentos. Pode ser uma coincidência, ou um equívoco, ou simplesmente nada. Teorias da conspiração.

O ambiente hoje estava turvo.

Ela não estava bem, isso é certo, e a encontrar-se uma resposta, que seja o fenómeno borboleta: um bater de asa causa um efeito inimaginável do outro lado do mundo. Ela, a mulher que ama os livros e o seu amante que a ama muito e a si, ao ponto de lhe fazer uma surpresa abraçando-a genuinamente, à hora de almoço em que toda a gente anda a correr porque o tempo falha para tudo, ao ter trocado o livro pelo dispositivo móvel, atraiu a inquietação, a dela e a dos outros, utentes diários deste local.

Os únicos que não deram por isso e continuaram excitados nos balouços e a fazerem ciclos intermináveis de escada-escorrega-cai-levanta e volta ao princípio - as crianças - não se afectaram pelo fenómeno, novas de mais para incorporarem as coisas sérias da vida.

No trajecto de regresso aos escritórios, muitos foram os que deram conta de que o tempo está a mudar.  Pede uma camisola, um agasalho ligeiro, para se estar no jardim.

A mulher, continua a ser amada abundantemente. Amanhã vai começar a ler o livro número 984, “Contos Húngaros”, etiqueta da biblioteca da periferia que habita. Hoje, aproveitou a hora almoço para enviar uma longa e sentimental mensagem ao irmão mais novo, enfermeiro em Reiquiavique.




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