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O CONVIVIO DA ALDEIA

  Nos domingos, nas aldeias destes interiores, o silêncio ouve-se ainda mais que nos outros dias da semana, intervalado pelo canto dos pássaros, ao despique, sendo na primavera, e sem contrapontos quando o outono vai preparado o mundo para a grande noite do inverno. É quando os velhos, que é um nome muito mais respeitável que idosos, vão ao Convívio na bela aldeia de Ana de Aviz. As senhoras, ainda com vaidades, arranjam-se para sair. Os homens, mais arredados dessas coisas da compostura, vão como estão, como andam todos os dias. A boina, ou boné, é que não podem faltar e no jeito de os pôr na cabeça, ora enterradas, ora simplesmente deixadas cair, pala para o lado ou inclinada, são essas as suas vaidades, que dizem muito sobre quem a usa. O Convívio tem no rés-do-chão, uma biblioteca com livros de temas variados, até enciclopédias. Como não é frequentada, os livros provavelmente deprimidos por não receberem ninguém para os folhear, desleixaram-se, descompuseram-se, descaindo das

O PROFESSOR

Como um aventar discreto, que mal se apercebe, que vai e volta, um sopro ínfimo que ainda assim refresca, neste caso, as recordações que se apresentam trazidas de uns confins, interior nosso, por esse vento quase não vento que é o nosso pensamento. Por vezes são partes incompletas, que pedem paciência e um labor de filigrana, para revelarem essa pequena história do passado. Outras, são tão vivas e completas, como se fossem de ontem, revelando nesses fotogramas que afloram ao nosso pensamento, episódios de pessoas que já não estão cá num volume a três dimensões, que habitam agora permanentemente a nossa casa interior. Extinto o corpo, a sua substância colou-se a nós, forra-nos. Os que chamamos de nossos, são os de sangue e todos aqueles que adoptamos com a grande naturalidade de serem escolhas evidentes. Aprendi a ler e a escrever com uma caligrafia bem desenhada e contida no espaço das linhas paralelas que pautavam as folhas da escola primária. Nas palavras, fui polido e cumprido

Vá para fora, olhando para dentro.

  No verão podemos divagar e flautear a cabeça nas coisas sem peso, acompanhados, e a pedir, pelo corpo que reclama lassidão, descompromisso, prazeres do momento. São os dias alongados, quentes, o tempo das férias, os dias em que os relógios do tempo fingem que se detêm, para os praticantes das artes da preguiça. No verão, o país debruça-se em fila num beiral a olhar para o mar, antes de pôr os pés de molho nas praias que lhe desenham os contornos. Dão costas ao que resta do país interior, que é a maior porção do país. E no interior, para quem conhece os segredos e tem curiosidade de procurar, também há praias para refresco dos pés. Casal de São Simão é uma aldeia de xisto, no concelho de Figueiró dos Vinhos. Reza a lenda (as lendas são as realidades oníricas que dão densidade aos lugares e as pessoas) que um casal de passeantes a descobriu, em ruínas, e comprou uma casa que renovou. Chamaram os amigos que compraram outras casas e agora é uma pequena comunidade de amigos, com um

AO SUL

Em tardes calmosas, Cativado pelo cântico repetitivo dos grilos, Sonho, Que sou um poeta andaluz Sentado na muralha no cimo da colina, A sonhar versos. Colorindo-os com as cores intensas Que fazem os finais de dia, Quando o sol se põe na ténue linha do mar, No outro lado da Ria Formosa. Os pescadores de ostras no seu afazer curvado, Não dão conta da minha presença, Nem sabem que estou a navegar versos, Ao Sul, nas tardes calorosas desta felicidade, de que são feitos os meus sonhos. E deixo-me estar, Imaginando epopeias utópicas e doces, Esperando que a noite me venha embalar.

AOS AMIGOS

  É quase certo que vivemos uma só vida.  Nesse tempo em que vestimos um corpo e somos animados por uma alma, na verdade, vivemos inúmeras vidas, imersos em ambientes vários, amigos vários, família, experiências e profissões. E é o juntar de todas essas pequenas vidas que fazem a nossa linha do tempo, a linha que nos leva do principio ao fim assinada com o nosso nome. Depois de muitas peripécias, a maior e mais enriquecedora de ser pai, resolvi que chegava o momento de ganhar perspectiva. Uma visão panorâmica desta aventura mirabolante que é viver. Para isso, decidi passar a minha pessoa como herói e protagonista principal de todos os episódios, para um papel de figurante, e sentar-me comodamente na poltrona, a assistir impávido e reconfortado ao andamento das coisas que me rodeiam, compreendendo-as, melhor ou não, assim o espero. Passar a ser um observador dos cenários que se desenrolam diante mim, sem que eu estivesse no palco. Para conseguir essa tranquilidade era fundamen

ANDORINHAS

o fim da tarde, ao redor da minha varanda, é estimulante o voo desenfreado e desinibido das andorinhas, que muitas, animam estes finais de dia em paisagens no campo. Parecem doidas, extravagantes, e se calhar são, voando velozmente, fazendo razias aos objectos fixos, mudando constantemente de rumo, evitando as outras, e são tantas que um observador como eu, se assusta sem razão, pensando que elas não se vão entender nesse seu voar errático. Depois do inverno em que o céu plúmbeo não autorizou o voo das aves, agora é uma explosão de vida, de chilreios estridentes. Esta tela que está sobre nós, enche-se de actores principais e secundários e de muitos figurantes. As andorinhas parecem crianças a brincar, elétricas, incansáveis. Voam com grande destreza, enchem a paz dos ares, com a sua vivacidade, são os últimos personagens a entrar em cena, antes que se abata sobre todos, observados e observadores, o crepúsculo, que na primavera e quando os céus estão despejados e limpos, se pintam d

O SONHO

Também eu não conheci o sonho da minha avó, aquele que na urdidura de todos os fios de sonhos, faz o grande tapete-sonho para forrar a memória que deixamos para os outros. Não me deu tempo para saber. Queria ser eterna na sua existência terrena, não apostou em mais nada senão aproveitar os instantâneos, pôs o tempo para trás das costas e não queria saber dele para nada, e de repente, deu-lhe a pressa de partir e deixou-me cheio de perguntas que não lhe pude fazer. Que sonhos teve de seus Maria, o que sonhou para mim, o neto substituto do filho que perdeu, num patético acidente de aviação, num lugar longínquo, num nevoeiro cerrado quando ia cantar para os militares que defendiam uma incongruência. Terei sido o seu grande sonho, depois de se ter esfumado o anterior, e para seguir em frente com a sua vida, teve de me sonhar a mim, para encher o espaço vazio, órfã de um filho, o menino de ouro de sua mãe. E quando as mães amam os filhos, a orfandade fica numa dor sem possibilidade de