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Mensagens

Vá para fora, olhando para dentro.

  No verão podemos divagar e flautear a cabeça nas coisas sem peso, acompanhados, e a pedir, pelo corpo que reclama lassidão, descompromisso, prazeres do momento. São os dias alongados, quentes, o tempo das férias, os dias em que os relógios do tempo fingem que se detêm, para os praticantes das artes da preguiça. No verão, o país debruça-se em fila num beiral a olhar para o mar, antes de pôr os pés de molho nas praias que lhe desenham os contornos. Dão costas ao que resta do país interior, que é a maior porção do país. E no interior, para quem conhece os segredos e tem curiosidade de procurar, também há praias para refresco dos pés. Casal de São Simão é uma aldeia de xisto, no concelho de Figueiró dos Vinhos. Reza a lenda (as lendas são as realidades oníricas que dão densidade aos lugares e as pessoas) que um casal de passeantes a descobriu, em ruínas, e comprou uma casa que renovou. Chamaram os amigos que compraram outras casas e agora é uma pequena comunidade de amigos, com um

AO SUL

Em tardes calmosas, Cativado pelo cântico repetitivo dos grilos, Sonho, Que sou um poeta andaluz Sentado na muralha no cimo da colina, A sonhar versos. Colorindo-os com as cores intensas Que fazem os finais de dia, Quando o sol se põe na ténue linha do mar, No outro lado da Ria Formosa. Os pescadores de ostras no seu afazer curvado, Não dão conta da minha presença, Nem sabem que estou a navegar versos, Ao Sul, nas tardes calorosas desta felicidade, de que são feitos os meus sonhos. E deixo-me estar, Imaginando epopeias utópicas e doces, Esperando que a noite me venha embalar.

AOS AMIGOS

  É quase certo que vivemos uma só vida.  Nesse tempo em que vestimos um corpo e somos animados por uma alma, na verdade, vivemos inúmeras vidas, imersos em ambientes vários, amigos vários, família, experiências e profissões. E é o juntar de todas essas pequenas vidas que fazem a nossa linha do tempo, a linha que nos leva do principio ao fim assinada com o nosso nome. Depois de muitas peripécias, a maior e mais enriquecedora de ser pai, resolvi que chegava o momento de ganhar perspectiva. Uma visão panorâmica desta aventura mirabolante que é viver. Para isso, decidi passar a minha pessoa como herói e protagonista principal de todos os episódios, para um papel de figurante, e sentar-me comodamente na poltrona, a assistir impávido e reconfortado ao andamento das coisas que me rodeiam, compreendendo-as, melhor ou não, assim o espero. Passar a ser um observador dos cenários que se desenrolam diante mim, sem que eu estivesse no palco. Para conseguir essa tranquilidade era fundamen

ANDORINHAS

o fim da tarde, ao redor da minha varanda, é estimulante o voo desenfreado e desinibido das andorinhas, que muitas, animam estes finais de dia em paisagens no campo. Parecem doidas, extravagantes, e se calhar são, voando velozmente, fazendo razias aos objectos fixos, mudando constantemente de rumo, evitando as outras, e são tantas que um observador como eu, se assusta sem razão, pensando que elas não se vão entender nesse seu voar errático. Depois do inverno em que o céu plúmbeo não autorizou o voo das aves, agora é uma explosão de vida, de chilreios estridentes. Esta tela que está sobre nós, enche-se de actores principais e secundários e de muitos figurantes. As andorinhas parecem crianças a brincar, elétricas, incansáveis. Voam com grande destreza, enchem a paz dos ares, com a sua vivacidade, são os últimos personagens a entrar em cena, antes que se abata sobre todos, observados e observadores, o crepúsculo, que na primavera e quando os céus estão despejados e limpos, se pintam d

O SONHO

Também eu não conheci o sonho da minha avó, aquele que na urdidura de todos os fios de sonhos, faz o grande tapete-sonho para forrar a memória que deixamos para os outros. Não me deu tempo para saber. Queria ser eterna na sua existência terrena, não apostou em mais nada senão aproveitar os instantâneos, pôs o tempo para trás das costas e não queria saber dele para nada, e de repente, deu-lhe a pressa de partir e deixou-me cheio de perguntas que não lhe pude fazer. Que sonhos teve de seus Maria, o que sonhou para mim, o neto substituto do filho que perdeu, num patético acidente de aviação, num lugar longínquo, num nevoeiro cerrado quando ia cantar para os militares que defendiam uma incongruência. Terei sido o seu grande sonho, depois de se ter esfumado o anterior, e para seguir em frente com a sua vida, teve de me sonhar a mim, para encher o espaço vazio, órfã de um filho, o menino de ouro de sua mãe. E quando as mães amam os filhos, a orfandade fica numa dor sem possibilidade de

NÓS NA CABEÇA

  Esta história de falarmos do meu tempo, do teu tempo, o tempo perfeito e completo, é uma confidência receitada piedosamente aos que foram cilindrados pelo rolo do tempo que pavimenta os caminhos. Naquele meu tempo e teu também, o jardim estava engalanado de uma fonte que jorrava luzes monótonas e previsíveis de vez em quando, tinha patos residentes e os brasões do Império, não ilustravam as fotografias dos turistas porque não os havia e não os havendo, não se tiravam fotografias. Nós, os putos, cirandávamos por esses domínios, soltos e felizes, fazendo das “nossas”, como compete fazer aos catraios. Muito por engano, ou transvio nesse espaço amplo, lá aparecia um visitante transeunte com pronúncia e modos, mas dos “nossos”, e lá o entendíamos como lusitano. O bairro do Restelo e de Belém era nosso, assim como todos os bairros, arredores e perímetro continental. Os outros territórios, assinalados nos mapas pintalgados nas escolas, espalhados pelo mundo, seriam a e aceitávamos com

PALAVRAS BELAS

As palavras ficam pálidas se não as pintamos com cores, disse-me alguém um dia e sabia o que dizia. Foi meu professor de instrução primária e era um homem sábio e humilde, que colecionava selos e sabia o nome de todos os alunos. Todos temos palavras preferidas, as que mais usamos, especialmente em ocasiões festivas. Mas no dia a dia algumas são tão repetidas que se tornam caricatas. Há mesmo quem passe a vida a repetir, uma cacofonia, as mesmas palavras rebuscadas e deslustrosas. É uma ideia sensata que as assentemos num caderno, não venham a ser esquecidas, se um dia fecharmos os lábios secos à construção dos sons ou se avariar a máquina de teclar pensamentos. Os forasteiros, caso venham a encontrar nos nossos despojos esse caderno, ficam a conhecer as palavras que nos preencheram, as peças que utilizámos para montar os sonhos e as ilusões, em castelos de papel manteiga, e que tantas vezes nas nossas vidas, desmoronaram com os vendavais dos nossos suspiros em dias de nostalgia