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Mensagens

AOS AMIGOS

  É quase certo que vivemos uma só vida.  Nesse tempo em que vestimos um corpo e somos animados por uma alma, na verdade, vivemos inúmeras vidas, imersos em ambientes vários, amigos vários, família, experiências e profissões. E é o juntar de todas essas pequenas vidas que fazem a nossa linha do tempo, a linha que nos leva do principio ao fim assinada com o nosso nome. Depois de muitas peripécias, a maior e mais enriquecedora de ser pai, resolvi que chegava o momento de ganhar perspectiva. Uma visão panorâmica desta aventura mirabolante que é viver. Para isso, decidi passar a minha pessoa como herói e protagonista principal de todos os episódios, para um papel de figurante, e sentar-me comodamente na poltrona, a assistir impávido e reconfortado ao andamento das coisas que me rodeiam, compreendendo-as, melhor ou não, assim o espero. Passar a ser um observador dos cenários que se desenrolam diante mim, sem que eu estivesse no palco. Para conseguir essa tranquilidade era fundamen

ANDORINHAS

o fim da tarde, ao redor da minha varanda, é estimulante o voo desenfreado e desinibido das andorinhas, que muitas, animam estes finais de dia em paisagens no campo. Parecem doidas, extravagantes, e se calhar são, voando velozmente, fazendo razias aos objectos fixos, mudando constantemente de rumo, evitando as outras, e são tantas que um observador como eu, se assusta sem razão, pensando que elas não se vão entender nesse seu voar errático. Depois do inverno em que o céu plúmbeo não autorizou o voo das aves, agora é uma explosão de vida, de chilreios estridentes. Esta tela que está sobre nós, enche-se de actores principais e secundários e de muitos figurantes. As andorinhas parecem crianças a brincar, elétricas, incansáveis. Voam com grande destreza, enchem a paz dos ares, com a sua vivacidade, são os últimos personagens a entrar em cena, antes que se abata sobre todos, observados e observadores, o crepúsculo, que na primavera e quando os céus estão despejados e limpos, se pintam d

O SONHO

Também eu não conheci o sonho da minha avó, aquele que na urdidura de todos os fios de sonhos, faz o grande tapete-sonho para forrar a memória que deixamos para os outros. Não me deu tempo para saber. Queria ser eterna na sua existência terrena, não apostou em mais nada senão aproveitar os instantâneos, pôs o tempo para trás das costas e não queria saber dele para nada, e de repente, deu-lhe a pressa de partir e deixou-me cheio de perguntas que não lhe pude fazer. Que sonhos teve de seus Maria, o que sonhou para mim, o neto substituto do filho que perdeu, num patético acidente de aviação, num lugar longínquo, num nevoeiro cerrado quando ia cantar para os militares que defendiam uma incongruência. Terei sido o seu grande sonho, depois de se ter esfumado o anterior, e para seguir em frente com a sua vida, teve de me sonhar a mim, para encher o espaço vazio, órfã de um filho, o menino de ouro de sua mãe. E quando as mães amam os filhos, a orfandade fica numa dor sem possibilidade de

NÓS NA CABEÇA

  Esta história de falarmos do meu tempo, do teu tempo, o tempo perfeito e completo, é uma confidência receitada piedosamente aos que foram cilindrados pelo rolo do tempo que pavimenta os caminhos. Naquele meu tempo e teu também, o jardim estava engalanado de uma fonte que jorrava luzes monótonas e previsíveis de vez em quando, tinha patos residentes e os brasões do Império, não ilustravam as fotografias dos turistas porque não os havia e não os havendo, não se tiravam fotografias. Nós, os putos, cirandávamos por esses domínios, soltos e felizes, fazendo das “nossas”, como compete fazer aos catraios. Muito por engano, ou transvio nesse espaço amplo, lá aparecia um visitante transeunte com pronúncia e modos, mas dos “nossos”, e lá o entendíamos como lusitano. O bairro do Restelo e de Belém era nosso, assim como todos os bairros, arredores e perímetro continental. Os outros territórios, assinalados nos mapas pintalgados nas escolas, espalhados pelo mundo, seriam a e aceitávamos com

PALAVRAS BELAS

As palavras ficam pálidas se não as pintamos com cores, disse-me alguém um dia e sabia o que dizia. Foi meu professor de instrução primária e era um homem sábio e humilde, que colecionava selos e sabia o nome de todos os alunos. Todos temos palavras preferidas, as que mais usamos, especialmente em ocasiões festivas. Mas no dia a dia algumas são tão repetidas que se tornam caricatas. Há mesmo quem passe a vida a repetir, uma cacofonia, as mesmas palavras rebuscadas e deslustrosas. É uma ideia sensata que as assentemos num caderno, não venham a ser esquecidas, se um dia fecharmos os lábios secos à construção dos sons ou se avariar a máquina de teclar pensamentos. Os forasteiros, caso venham a encontrar nos nossos despojos esse caderno, ficam a conhecer as palavras que nos preencheram, as peças que utilizámos para montar os sonhos e as ilusões, em castelos de papel manteiga, e que tantas vezes nas nossas vidas, desmoronaram com os vendavais dos nossos suspiros em dias de nostalgia

A LA MINUTE

Sempre que passei e passo muito esporadicamente por esse largo, um semicírculo, experimento a mesma sensação, o que me leva desarmado da convicção científica, que não a encontro, a acreditar que há ali qualquer coisa de outra Dimensão. Uma paranormalidade. Não só nesse semi-largo, como também ao longo dos extensos muros que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Acontece uma luminosidade diferente, mais intensa, como se flutuando no ar, partículas piscantes de luz, tal e qual o que nos acontece quando depois de uma exposição excessiva e focada a uma fonte de luz, e ao fecharmos os olhos, ficamos inundados dessas partículas de luz a saltitarem sobre o fundo negro do nosso interior ocular. Essa aparição talvez só sentida por mim, em pele de galinha, deixa-me desconfortável e por isso vou poucas vezes ao cemitério do Alto São João, ou seja, ao Largo que anuncia os portões de entrada no reino dos que já partiram. E nada me leva a esse lugar, a não ser uma memória de um dia passado

ESTRANHO ESTRANGEIRO

  Não foi quando, nesse comboio de emigrantes, o medo paralisante e agudo caiu em mim e fui impedido de seguir viagem, rumo a um futuro que tinha sonhado. Ali fiquei, num apeadeiro impessoal e estrangeiro, numa manhã desamparada, impedido por um carimbo no passaporte, e guardas com rostos de não terem amigos, ávidos por desconsiderarem quem ia em busca de amanhã num comboio perro e lento, a caminho de uma nova escravidão. Esse medo tomou forma depois, quando despertei na manhã seguinte, num quarto desconhecido e desconfortável, com um colchão de pouco aconchego, no chão de madeira descolorida de brilhos, e me dirigi à janela desse quarto de exílio. Nesse momento entendi e sofri o peso insustentável da solidão, o de não ter ali mais ninguém, só. Pela primeira vez a minha sombra não tinha companhia e esse desagrado, desenhou a irracionalidade do medo que paralisou o meu pensamento e a acção.  Quando fixei o olhar ainda enevoado pelo despertar e vi uma rua desconhecida, não lhe sabi