Sempre que passei e passo muito esporadicamente por esse largo, um semicírculo, experimento a mesma sensação, o que me leva desarmado da convicção científica, que não a encontro, a acreditar que há ali qualquer coisa de outra Dimensão. Uma paranormalidade. Não só nesse semi-largo, como também ao longo dos extensos muros que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Acontece uma luminosidade diferente, mais intensa, como se flutuando no ar, partículas piscantes de luz, tal e qual o que nos acontece quando depois de uma exposição excessiva e focada a uma fonte de luz, e ao fecharmos os olhos, ficamos inundados dessas partículas de luz a saltitarem sobre o fundo negro do nosso interior ocular. Essa aparição talvez só sentida por mim, em pele de galinha, deixa-me desconfortável e por isso vou poucas vezes ao cemitério do Alto São João, ou seja, ao Largo que anuncia os portões de entrada no reino dos que já partiram.
E nada me leva a esse lugar, a não ser uma
memória de um dia passado, em que teria no máximo quatro anos, e ia de mão dada
com uma prima mais velha, vestidos de anjinhos, porque íamos vestidos de um
imaculado branco, sem asas, e atravessávamos esse Largo para irmos tirar uma
fotografia dos dois.
Na sala da entrada, havia um pequeno balcão
em madeira, com um caderno e um lápis pousados, as paredes da divisão estavam repletas de
fotografias emolduradas: casamentos, batizados, bodas e festas, comunhões
solenes, meninos em fila na escola, jogadores de futebol. De tudo um pouco. Quase
todas a preto e branco, com uns toques aqui e ali de cor: uns lábios carnudos
delineados e vermelhos; uns olhos azuis sonhadores; um fundo a sépia para fazer
o contraste como o branco e o preto. Na
sala, com excepção a nós os dois, primos, de mão dada, não estava mais ninguém.
Chegou depois, um homem com uma gravata desarranjada e a falhar a simetria,
fazendo uma curva para a esquerda da camisa desapertada, que se despediu de um
jovem casal e a seguir nos convidou a
entrar no Studio.
Este, era acanhado. Do tecto, em fila, uns
quatro ou cinco rolos, com um sistema de roldanas que estendia até ao chão, e
as enrolava também, telas com motivos. Cada uma como se fosse um quadro
pintado. Tão bem pintado que parecia quase uma fotografia. Uma com um balcão de
pedra branca, ornamentada, e por trás, um jardim exuberante cheio de flores
coloridas. Outra com uma cena bucólica de campo, toda em verdes, ondulados em
colinas suaves. Outra ainda, a nudez carregada do mar, com rochedos escuros,
sujos, que rompiam a água, pintada de forma a imitar a revolta das ondas num
dia de tempestade.
O Homem baixava e subia essas telas, para
escolhermos o fundo da nossa fotografia. No lado oposto da sala, a meio, uma
grande caixa de madeira com um óculo de vidro sobressaindo do objecto. Tudo
estava sustentado por um tripé, que se percebia, olhando com mais atenção, ter
um sistema para aumentar ou diminuir o tamanho das pernas do tripé, fazendo
assim baixar ou subir a caixa de madeira. Havia também, num dos cantos, um pau
com uma espécie de vassoura sem pelos, espelhada.
A meio da sala, entre o cenário e a máquina,
os clientes tinham várias opções, ou melhor, três. Ficarem estáticos, de pé,
ficarem estáticos sentados, ou um ficar estático sentado e o outro ficar
estático de pé. Imagino que haveria mais opções estáticas para grupos maiores.
Não sei que escolha fizemos, mas foi com
certeza uma boa escolha. A dado momento o senhor que nos recebeu, escondeu-se
arás da caixa e enfiou a cabeça, sabe-se lá porquê, dentro da referida. Num som
abafado, difícil de entender, que vinha de dentro do quadrado, mandou-nos
sorrir. Fez-se um clarão vindo do pau da vassoura, o homem saiu com a cabeça da
caixa, acendeu a luz e mandou-nos esperar uns minutos breves na sala por onde
tínhamos entrado. Foi rápido.
A minha prima, no alto da sua sabedoria de
prima mais velha, teria uns dez anos, disse que acabávamos de tirar uma
fotografia a La Minute, nome que alguém lhe terá dito, porque não
acredito que sendo a primeira vez que íamos a esse local, ela já soubesse o
nome do senhor fotografo. Deve ter sido a minha tia, sua mãe verdadeira, que
lhe disse. Também eu, só muito mais tarde, vim a saber que afinal o homem não
se chamava assim, que era a designação que definia o estilo de fotografia que
tínhamos tirado. Pagámos e saímos.
Não dizem que as almas sobem aos céus
quando se morre? Aquela claridade de pirilampos piscantes que se evapora do
cemitério, dos seus muros e do largo onde se vendem flores dos mortos poderá
ser explicada pela concentração excessiva de mortos nesse local, e as almas, todas
juntas a soltarem-se das amarras dos corpos inúteis, voando para a sua morada
celestial.
Do senhor La Minute não fiquei com
prova da sua existência porque nunca mais o vi e porque a fotografia que tinha
um fundo campestre de um Jardim das Delícias e dois anjinhos a sorrir, um
desdentado, se perdeu algures no caminho que fizemos de volta para casa.
Na actualidade, fujo quanto posso dos
cemitérios, dizem que tem más companhias, mas sei que onde era o Studio
do senhor La Minute, é agora um posto de venda de Khebab gerido
por um senhor com um grande turbante escarlate que é muito simpático, mas só
fala Urdu, o que não ajuda nada ao negócio quase em frente à entrada da cidade
dos talhões numerados.
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