Não foi quando, nesse comboio de
emigrantes, o medo paralisante e agudo caiu em mim e fui impedido de seguir
viagem, rumo a um futuro que tinha sonhado. Ali fiquei, num apeadeiro impessoal
e estrangeiro, numa manhã desamparada, impedido por um carimbo no passaporte, e
guardas com rostos de não terem amigos, ávidos por desconsiderarem quem ia em
busca de amanhã num comboio perro e lento, a caminho de uma nova escravidão.
Esse medo tomou forma depois, quando despertei
na manhã seguinte, num quarto desconhecido e desconfortável, com um colchão de
pouco aconchego, no chão de madeira descolorida de brilhos, e me dirigi à
janela desse quarto de exílio. Nesse momento entendi e sofri o peso insustentável
da solidão, o de não ter ali mais ninguém, só. Pela primeira vez a minha sombra
não tinha companhia e esse desagrado, desenhou a irracionalidade do medo que
paralisou o meu pensamento e a acção.
Quando
fixei o olhar ainda enevoado pelo despertar e vi uma rua desconhecida, não lhe
sabia o nome, e que o soubesse não o saberia dizer, rua com carros diferentes,
pessoas diferentes, quotidiano alheio ao meu conhecimento, por ser jovem e sem
experiência de adulto sério. Quis voltar para trás. Não podia, estava longe e
tinha decidido que seria assim, mesmo que a vontade de gritar só fosse anulada,
pelo decoro que sempre tive nos ambientes estranhos.
Para contrariar o silêncio abafado do
quarto, abri a janela, defronto-me com ruídos novos, sons que me chegam de
lengalengas desconhecidas que os transeuntes falam, outra língua. Os odores que na sua mistura não são identificáveis com os cheiros que eu conheço
das ruas que são as minhas no sítio que me despedi quando entrei no comboio,
porque as percorri vezes sem conta e as interiorizei como minha. São os odores que são,
mas não são meus nem familiares.
Nesse primeiro dia numa terra agreste e
desconhecida, onde me vejo obrigado a um recomeço, sento-me perdido e amedrontado.
Saio do apartamento tomando atenção ao
número do prédio e ao desenho da porta. Sou bom em decorar, pelos detalhes que
capto, as portas que estão abertas para mim.
Saio à rua, tentando disfarçar a timidez de
quem está perdido. Não nos podemos inferiorizar. Levanto os olhos do chão e
começo a caminhar como se o chão que piso fosse meu. Não era, mas nenhum
transeunte, nesse momento, tinha de o saber.
É o tempo, uma questão de tempo. Começo a
colecionar pontos de referência, de ouvido atento, desnovelo na concentração
que faço de ouvir o que as pessoas dizem, expressões próprias e importantes, e quando
dou conta, numa posterior repetição desse momento em frente a uma janela, gosto
do que vejo, absorto na tranquilidade de um cenário íntimo.
É a minha terra, e assim tem sido. Com a vida
deixei de me assustar com o que está do outro lado das janelas, desafio-me na
expectativa de as abrir, amplas, para arejar o bafio e a humidade dos sonhos povoados
de papões, ou perfumarem a minha existência com uma renovação. No entanto,
gosto das janelas com vista.
Esse medo, porque me veio à cabeça e não
sei porque o estou a contar e recordar, foi há muito tempo e passou. Já não me
assustam os apeadeiros com guardas que não têm amigos.
Comentários
Enviar um comentário