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PALAVRAS BELAS

As palavras ficam pálidas se não as pintamos com cores, disse-me alguém um dia e sabia o que dizia. Foi meu professor de instrução primária e era um homem sábio e humilde, que colecionava selos e sabia o nome de todos os alunos. Todos temos palavras preferidas, as que mais usamos, especialmente em ocasiões festivas. Mas no dia a dia algumas são tão repetidas que se tornam caricatas. Há mesmo quem passe a vida a repetir, uma cacofonia, as mesmas palavras rebuscadas e deslustrosas. É uma ideia sensata que as assentemos num caderno, não venham a ser esquecidas, se um dia fecharmos os lábios secos à construção dos sons ou se avariar a máquina de teclar pensamentos. Os forasteiros, caso venham a encontrar nos nossos despojos esse caderno, ficam a conhecer as palavras que nos preencheram, as peças que utilizámos para montar os sonhos e as ilusões, em castelos de papel manteiga, e que tantas vezes nas nossas vidas, desmoronaram com os vendavais dos nossos suspiros em dias de nostalgia

A LA MINUTE

Sempre que passei e passo muito esporadicamente por esse largo, um semicírculo, experimento a mesma sensação, o que me leva desarmado da convicção científica, que não a encontro, a acreditar que há ali qualquer coisa de outra Dimensão. Uma paranormalidade. Não só nesse semi-largo, como também ao longo dos extensos muros que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Acontece uma luminosidade diferente, mais intensa, como se flutuando no ar, partículas piscantes de luz, tal e qual o que nos acontece quando depois de uma exposição excessiva e focada a uma fonte de luz, e ao fecharmos os olhos, ficamos inundados dessas partículas de luz a saltitarem sobre o fundo negro do nosso interior ocular. Essa aparição talvez só sentida por mim, em pele de galinha, deixa-me desconfortável e por isso vou poucas vezes ao cemitério do Alto São João, ou seja, ao Largo que anuncia os portões de entrada no reino dos que já partiram. E nada me leva a esse lugar, a não ser uma memória de um dia passado

ESTRANHO ESTRANGEIRO

  Não foi quando, nesse comboio de emigrantes, o medo paralisante e agudo caiu em mim e fui impedido de seguir viagem, rumo a um futuro que tinha sonhado. Ali fiquei, num apeadeiro impessoal e estrangeiro, numa manhã desamparada, impedido por um carimbo no passaporte, e guardas com rostos de não terem amigos, ávidos por desconsiderarem quem ia em busca de amanhã num comboio perro e lento, a caminho de uma nova escravidão. Esse medo tomou forma depois, quando despertei na manhã seguinte, num quarto desconhecido e desconfortável, com um colchão de pouco aconchego, no chão de madeira descolorida de brilhos, e me dirigi à janela desse quarto de exílio. Nesse momento entendi e sofri o peso insustentável da solidão, o de não ter ali mais ninguém, só. Pela primeira vez a minha sombra não tinha companhia e esse desagrado, desenhou a irracionalidade do medo que paralisou o meu pensamento e a acção.  Quando fixei o olhar ainda enevoado pelo despertar e vi uma rua desconhecida, não lhe sabi

A TOPIARIA

Nos jardins suspensos - imaginando-os suspensos - que rodeavam a torre de Babel, estes na Babilónia, mas seguramente que os houve em Babel, mas que também podiam ser numa cidade invisível de Calvino, ou noutras utopias, ajardinavam estes, rodeando-a em todo o seu perímetro, a torre alta o suficiente para alcançar o céu, e Deus, na sua moradia celestial, não gostou ser dessa forma incomodado pelos homens e como castigo ordenou que falassem muitas línguas, todas diferentes, uma algaraviada, para que se desentendessem, presumidos que podiam chegar às esferas superiores e falar com Ele sem marcação prévia e anunciada. Se ainda hoje, os homens andam na miragem de criarem uma língua única universal, desenganem-se, Deus continua atento e com ou sem arranha-céus a poluírem a sua morada, não o vai permitir. Fique certo que jamais os homens falarão uma só língua. Diz-se que disseram que esses jardins, belíssimos e únicos, foram construídos por botânicos e agrimensores regulados pela arte d

O MIÚDO E A BANDEIRA

      Corre apressado o miúdo com uma bandeira na mão. Vai compenetrado. Onde vai ele que vai tão sério? É o porta-bandeira. O catraio, ainda criança, vai decidido. É a sua bandeira, com as cores que mais gosta. Ele veste uma camisola vermelha com o nome de um país, escrito a dourado, nas costas e uma cruz ao peito. Apesar da urgência dos seus passos ainda curtos de criança, consegue-se perceber no que se vê do seu rosto ainda imaculado, quase escondido pelos longos caracóis do seu cabelo, oiro, reflexos brilhantes com o soprar da brisa leve que se faz sentir neste dia de calor, que ele sorri. Vai, portanto, alegre e apressado, porque leva consigo, bem segura na sua mão frágil e apoiada no ombro, uma bandeira que é muito importante. É a sua, e se vai assim, atravessando o que parece ser uma rua com uma parede amarela, é porque tem um propósito, talvez seja uma missão, que alguém lhe deu, ou porque veio da sua cabecita de pequeno futuro homem, tão pequeno ainda e tão adulto nessa sua

Abril ou a impossibilidade da utopia

Falta só um ano, tão pouco, tanto, para este país anacrónico e tão incompreensível, completar cinquenta anos de um sonho de democracia. Um ano como se fosse mais cinquenta, e sempre tão longe, pelo que se conseguiu e erodiu, pelo que não se conseguiu e nem se tentou, pelo que se desbaratou e deitou ao lixo com estrondo, pelo que se aproveitou para benefício próprio e desconsideração ofensiva aos outros, porque fracos, ou porque são honestos, ou porque andam sonolentos e distantes. No dia 31 de Março de 1974, um mês antes de um herói, cavaleiro-andante, selar definitivamente o quartel do Carmo numa manhã nublada de Abril, o ditador em funções do regime, foi insanamente aplaudido por 80.000 crentes ou tontos, situacionistas eram (estive presente e vi, era adolescente ainda, não sabia ainda se era tonto ou crente, ou desalinhado), num clássico de futebol na metrópole do Império, com narrativas branqueadas nos compêndios da História oficial. Tudo “a Bem da Nação”, o seu povo submisso e o s

O NOSSO LUGAR

A Biscaia é um golfo, nome de um mar com personalidade, que banha a Galiza, as Astúrias e o País Basco. Mar de histórias, de lendas, de canções, de lágrimas pelos seus náufragos, sendo assim um mar como todos os outros, que geram as mesmas emoções. No cimo de um penhasco íntimo e meu, olhei muitas vezes esse mar e deixei-me levar por sonhos. Não me imaginei marinheiro, apesar de ser romântico e gostar do Corto Maltese. Imaginei-me alguém a olhar o mar e sentir no rosto descoberto os salpicos salgados de uma certa melancolia minha. Esta saudade que nos mantém cativos e doridos. Cárcere a céu aberto. O mar tem esse efeito em nós, levar-nos com ele, sem necessidade de justificações nem rumo definido. Numa terra que conheço ainda melhor, não longe de Lisboa, existe uma pequena localidade que se chama Biscaia. Não sei se em honra desse mar a Norte. Fica no cimo de um penhasco, meia dúzia de casas, um pequeno pinhal, e o manto habitual da flora autóctone meio selvagem que lhe dá ainda en