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FEIRA DA LADRA

  Foi numa manhã de primavera que a conheci, e gosto que tenha sido nessa manhã e naquela ideia feita do tempo da renovação da vida que se cola a esta estação do ano. Foi há uma vida que esse dia e essas condições particulares aconteceram. Agora, já está tudo nebuloso e intermitente. A visão e a memória.   Gosto que tenha acontecido aquele dia assim. Na despedida do mês de Abril, quando o sol, nos intervalos dos plúmbeos dos céus que se resolvem da chuva até que o outono dê de caras, que começa a acenar-nos com a promessa de tempos mais despejados e calorosos. Há dias de Abril como não os há noutros momentos do ano. É o mês da renovação da esperança. Da utopia da igualdade. Da quimera da liberdade.    Fui cedo, ao romper do dia, para conseguir um bom lugar. A feira da Ladra, levanta-se com a noite, quando toda a cidade ainda sonha sonhos e pesadelos, sabendo que amanhã é sábado.   Seriam umas sete horas da manhã, quando estendi uma toalha de mesa, cor carmim e com relevos brocados, pel

CARRINHOS DE CHOQUE

  Monte Gordo. Uma praia tropical. Para mim era e segundo a opinião do meu pai que percebia imenso de praias tropicais de nunca ter estado em nenhuma. Água quentinha. Para quem, como eu, estava habituado às temperaturas quase gélidas da praia de Paço d’Arcos, o mais longe que o meu avô nos levava, para branquear (aos olhos do mundo e bronzeá-la a ela), a amante que o acompanhava e que nós pensávamos que era nossa tia, esta água é mesmo quentinha. Quase sem ondas, anda-se e anda-se e estamos sempre com água abaixo das rótulas. E muitas conquilhas.   Foi uma paixão de rompante, a rasgar emoções que ainda não conhecia. Jurámos eternidade numa pista de carrinhos de choque. Em Monte Gordo.   Nesse relâmpago que nos entonteceu e revirou o mundo às avessas, apesar de estar a frequentar pela primeira vez uma praia tropical, consumi todas as férias, especado umas vezes à espera da abertura do recinto, enaltecido outras quando a via chegar, e íamos, cada um no seu carrinho, executar um longo bai

NÃO HÁ AMOR COMO O PRIMEIRO

Uma deusa, num pedestal. Cinquenta quilómetros, com as voltinhas todas, montado numa Honda Amigo , com pedais, mas artilhada: o escape roncava como um leão. Deixei nesse dia as aulas a falarem consigo próprias, matemática e física, eu que queria Letras mas não pude porque para o meu pai, ou era Engenharia, ou Económicas, ou Direito , e o resto era conversa, e eu a achar que o amor se sobrepunha a tudo isso. E fui atrás dele.   Nunca mais lá chegava, e o amor a chamar-me, e eu apressado e desajeitado nestas coisas do amor, tudo era novo, a primeira vez, e a querer atender ao chamamento.  A bicicleta motorizada a dar o que podia, honesta nos seus limites, íamos para aí, no máximo, uns trinta por hora. E o vento, que seja a que velocidade se vá, está sempre a fustigar-nos, a dar-me estalos na cara, como se estivesse montado num foguete norte-coreano.   Era tão avassaladora a vontade de lhe manifestar o meu amor primeiro, ou paixão, ou o que se lhe dê nome, nessas gradações de um cora

O MEU CÃO TEM PELO MENOS SESSENTA ANOS

  Afinal o Tôto, o cão preto e caçador, companheiro do meu avô e que tinha esse nome por ser a zona onde o meu tio, seu filho, fez a guerra, num país em África, ou seja, não a fez, assistiu a ela porque teve a sorte de ser amanuense, não morreu, nem o cão nem ele. O Tôto, que eu cavalguei a mimetizar touradas no pátio na Afonso III, o pátio onde com quatro anos, me enamorei pela primeira vez, pela menina do pátio ao lado, já não me lembro do nome dela, mas enamorei-me tanto; o mesmo que veio ter comigo a casa, quando os meus avós foram viver para Algés de Cima, e ele, certamente cheio de saudades minhas, pôs-se ao meu caminho, e quando alguém se põe ao caminho de alguém, mesmo desconhecedor e assustado por esse caminho, não é um acto único e absolutamente magnífico? Ainda mais um cão a fazê-lo por nós? É que afinal, o Tôto nunca deixou de estar comigo e no intervalo de tempo em que estes episódios se passaram e o dia de hoje, fui eu que andei distraído: neste mesmo momento o Tôto a

O CALOR

Por vezes visita-me a memória de um calor que já não existe, um calor materializado, com uma muito particular sensação de temperatura, de cheiro próprio, com contornos, como se não pertencesse ao reino das sensações subjectivas, mas ao reino dos seres. É um calor de quando era pequeno, naqueles lentos dias de verão, algures, não sei se no Norte se no Sul, uma casa, talvez de férias, na hora da sesta, o silêncio a conseguir ouvir-se, um zumbido ínfimo, se calhar era o zumbido do calor e eu a achar que era o silêncio a sussurrar conversas. Já não há esses calores. Eu resistia ao torpor do ínicio da tarde, tentava não dormir, e abria as portadas verdes da janela com ripas, e convidava o calor a entrar.  Enchia o quarto sombrio de luz. Brincávamos juntos, a inventar enredos com dois personagens, ele e eu. As crianças não conseguem estar paradas, menos as de natureza contemplativa, que se manifesta precocemente, mas só mais tarde os efeitos se farão notar. Brincava não sei agora como, não

O ANCÓNIO

O meu pai organizou a sua vida em fun çã o do Ancónio , um c ã o Epagneul Breton que o filho mais velho, eu, fez o parto e cortou a cauda, como era prática nesse tempo. Tinha esse nome estranhíssimo, dado pelo meu irmão que na altura aprendia um pouco da anatomia do corpo humano, como parte da sua formação em Belas Artes, nome dado a um músculo ridículo e vá-se saber porque o meu irmão resolveu dar esse nome ao cão que não teve nenhuma culpa de ser chamado publicamente dessa forma bizarra. Os filhos sa í ram de casa – se soubessem o que os esperava, tinham ficado até aos quarenta - e considerando que lhes faltava aos pais, uma razão de ser, um objectivo existencial, deram-lhes o cachorro. A minha mãe, como sempre fez de forma exímia, omitiu a existência do bicho, e se ao filho mais velho, eu, chamava pelo nome do seu mais que tudo, o meu irmão, o animal, apesar de Ancónio, também passou a ser e muito chamado à razão com o nome do meu irmão, que a minha mãe, por obsessão, teimosia, o

O QUE SE SONHA E O QUE SE É

Sonhei, já não vou ser um navegante curioso, de mares incógnitos; já não vou ao sabor de rumos perdidos, desnorteado pelas bússolas, doidas e desmagnetizadas por culpa das acções dos homens, que alteraram a harmonia da terra; não vou passar cabos tormentosos a pique, nem defrontar monstros aterradores; não chegarei a dizer, aproveitando os ventos que sibilam, que venho da terra dos Descobridores, que se apaziguem as águas e as tempestades, para eu poder passar. Sou marinheiro de natureza e feitio e tenho pressa de amarar em todos os portos e aprender a falar línguas desconhecidas e complexas, e dar-me com todos que venho por bem e todos quero conhecer. O tempo, esse inexorável carrasco dos sonhos, cilindrou o meu desejo, empurrou-me para outros futuros. Começo a chegar tarde a tudo e as portas fecham-se com estrondo perante a minha incredulidade. Quando era pequeno, quando ainda podia ser tudo, até o impossível, queria ser marinheiro e possuir um belo barco de madeira envernizada e