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AMBULÂNCIA-POSTAL

  Uma ambulância, postal. Não uma ambulância naquele sentido de serem anunciadoras de uma urgência, com luzes piscantes, sirenes agudas. Chamava-se assim mas não se sabe porque se chamava assim. A ambulância era uma carruagem de comboio, a última, contando desde a primeira, da locomotiva no sentido da retaguarda. O espaço interior dessa carruagem estava dividido em duas áreas: metade, uma espécie de armazém, a outra metade, um escritório. Nem isso, uma imitação de uma loja de correios. Neste caso, ambulante. A metade escritório estava forrada de prateleiras quadriculadas, com nomes de localidades, escritos à mão. Não havia códigos postais, só localidades. Uma bancada de madeira corria a toda a extensão dessa metade escritório da carruagem. Em fila, carimbos alinhados por uma ordem emanada dos correios que desconhecemos agora. Também selos metálicos, em relevo, para lacrar, a fazer prova de inviolabilidade dos documentos. O meu avô Mário trabalhou nas ambulâncias postais e reformou-se a

A QUINTA

Sentávamo-nos os dois e tínhamos longas conversas. Ou melhor, ele desenrolava memórias, como numa fita de celulóide a passar numa máquina de cinema antiga, contando-as pausadamente como relíquias orais que pouco se contam agora. Eu quase não me fazia notado, quase invisível, a ouvir com toda a atenção, para me recordar mais tarde, ficaria eu, algum dia, o fiel depositário desse tesouro e teria de as tratar bem e sabê-las de cor, para serem verosímeis na minha voz, mais não fosse contando-as para mim, ao adormecer, todas as noites, embalado por histórias de tempos e pessoas que deixaram de existir, como eu, um dia. Para que ele respirasse e acrescentasse drama e emoção ao que ia contar a seguir, mesmo que fosse só para acender um cigarro, fazia-lhe perguntas. Ele deixava-se levar, sabendo que com isso eu queria ganhar-lhe tempo, para me concentrar melhor e absorver todos os pormenores e detalhes. Sentávamo-nos os dois na parte de trás da casa, que não precisava de estar tão bem pint

A DESPEDIDA

  Um homem e uma mulher abraçam-se demoradamente. Não são novos. Abraçam-se como se estivessem a representar uma despedida definitiva. Um jornalista faz uma pergunta. Vai regressar ao seu país, defender o seu país distante. Entende-se agora a razão desse abraço, ou não. A mulher também vai com ele. Do que eles se despedem agora é deste país de cá, também deles, e desta paz do sol e dos ventos suaves, e das gentes amáveis e das cores tão fortes ,mas nada é garantido. É essa coisa estranha, difícil de explicar, de compreender. Que tipo de sentimento, de amor, esse? A quê? À terra? A uma língua? A uma identidade colectiva? A uma cultura? Não se sabe, nem interessa, que decisão tão difícil, ou se calhar tão fácil, homens e mulheres fazerem a viagem em sentido contrário: da sua terra de acolhimento e onde já lançaram raízes, para voltarem à terra de origem. Da protecção e do conforto para o medo atroz de uma guerra. Para defenderem a sua ideia, íntima e pessoal desse amor mais forte do qu

É A PAZ

  Em dias tranquilos e belos, consigo imaginar a paz, felicidade, como quiserem chamar. Quando o sol aquece mas não se intromete, quando se põe uma aragem suave, uma brisa que corre doce e transporta às suas costas odores perfumados, quando nessa quietação quase a parecer coisa de outros mundos, os pássaros chilreiam canções e as laboriosas abelhas colhem o futuro nos estigmas das flores, parteiras do mundo, páro, sento-me num banco velho sobre a janela da marquise do apartamento gasto, e vivo os gloriosos momentos de um fim de dia, no campo que trouxe para a cidade e que cabe na moldura dessa janela.   À minha esquerda, na continuação do telhado, pousam gaivotas e melros e falamos de coisas nossas. Em frente entre os prédios, a falha de um dente, há uma nesga por preencher. Vejo um pedaço do mar e a linha que marca o horizonte, e é precisamente nessa nesga, nem de propósito, que o sol se põe, fazendo espectáculos luminotécnicos exuberantes, banalidades para a natureza que não tem conc

MARIA

  Fecha os olhos, vá, eu sou amiga do escuro e ele disse-me que também gosta de ti, não tenhas medo, puxa o lençol, aconchega-te, e descansa meu menino, eu velo por ti .  E ali ficava ela, sentada ao lado da cama, cansada de um dia cansado, a velar por mim, era o que sabia fazer melhor. Vejo-a a sorrir, olhos mínimos, pretos, rútilos, grandes pequenos olhos os seus. Franzina, muito magra, quase a desfazer-se, sem cuidado especial no vestir, a velar por mim. O corpo, como nenhum outro, resistiu às intempéries dos dias que se sucedem, a biologia cumpriu-se no que é expectável; a alma que se calhar não existe ou foi para partes incertas; o espirito, é o quê?; nada ficou, mas ficou tudo: a imagem tridimensional do seu corpo, do seu rosto, onde está sempre bem vestido um sorriso honestíssimo e bom, e os olhos, atentos, agudos, que veem todas as panorâmicas do mundo. Só não ficou a voz, esfumou-se como a areia escapa das mãos. É um grande esforço, faz tanta falta o som da voz. Perdeu-se. Qua

PUTO CHARILA, MACACO SEM PILA

  Os seios, dois, brasileiros, robustos, vastos, desfraldando-se sobre um decote abusador. Hora do banho. Velhíssimo. Sem identidade, como quem perdeu as chaves de casa, nem o seu nome conhece. Cortina densa e branca que cobre a memória. Á água quente é agradável. Não é. Não se sabe. A massagem delicada e minuciosa do sabonete pelo corpo faz espuma, amacia. É possível. Num momento sem medição, o rosto, enrugado, cinzento, transforma-se. Um brilhozinho nos olhos, cara de puto. Parece ser o esboço de um sorriso matreiro. São os seios, dois, brasileiros, e a mão que passa o sabonete e contorna contornos. Após o instante infinitesimal de gosto e vida, um novo apagão. Treme agora com frio apesar da toalha embrulhar o corpo. Esgota-se o dia no cadeirão, manta nos pés, a cabeça pendida para um lado. Televisão estridente e popular. A comida é sempre a mesma, mas não se dá conta. Ela é a melhor cuidadora do lar, vai ao pormenor.

PILOTO DE RALIS

  A última grande esperança. Depois da elevada expectativa em ser o melhor jogador de berlindes, que não se concretizou por um problema espasmódico da minha mão esquerda; depois de perceber que não iria ser o maior matemático do mundo, com as notas humildes que consegui nos anos primários; depois de chegar à conclusão que estava longe de ser um Adónis, de muito me olhar ao espelho e de aos quinze anos ainda não ter dado um único, que fugidio, que depenicado, beijo na boca; ser o melhor piloto de ralis da estratosfera, não sabendo eu o que era a estratosfera – que me parecia bem e adequado às minhas ambições -, era o lugar no pódio do mundo que me estava reservado num futuro próximo. Os meus tios alugaram uma casa ao ano, durante anos, numa aldeia chamada Sobreiro, a poucos quilómetros da Ericeira. Como eramos uma família solidária, eles pagavam a renda e nós os primos, os sobrinhos, os amigos mais amigos, usufruíamos essa comodidade. Então, quase todos os fins-de-semana íamos para