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Mensagens

MARIA

  Fecha os olhos, vá, eu sou amiga do escuro e ele disse-me que também gosta de ti, não tenhas medo, puxa o lençol, aconchega-te, e descansa meu menino, eu velo por ti .  E ali ficava ela, sentada ao lado da cama, cansada de um dia cansado, a velar por mim, era o que sabia fazer melhor. Vejo-a a sorrir, olhos mínimos, pretos, rútilos, grandes pequenos olhos os seus. Franzina, muito magra, quase a desfazer-se, sem cuidado especial no vestir, a velar por mim. O corpo, como nenhum outro, resistiu às intempéries dos dias que se sucedem, a biologia cumpriu-se no que é expectável; a alma que se calhar não existe ou foi para partes incertas; o espirito, é o quê?; nada ficou, mas ficou tudo: a imagem tridimensional do seu corpo, do seu rosto, onde está sempre bem vestido um sorriso honestíssimo e bom, e os olhos, atentos, agudos, que veem todas as panorâmicas do mundo. Só não ficou a voz, esfumou-se como a areia escapa das mãos. É um grande esforço, faz tanta falta o som da voz. Perdeu-se. Qua

PUTO CHARILA, MACACO SEM PILA

  Os seios, dois, brasileiros, robustos, vastos, desfraldando-se sobre um decote abusador. Hora do banho. Velhíssimo. Sem identidade, como quem perdeu as chaves de casa, nem o seu nome conhece. Cortina densa e branca que cobre a memória. Á água quente é agradável. Não é. Não se sabe. A massagem delicada e minuciosa do sabonete pelo corpo faz espuma, amacia. É possível. Num momento sem medição, o rosto, enrugado, cinzento, transforma-se. Um brilhozinho nos olhos, cara de puto. Parece ser o esboço de um sorriso matreiro. São os seios, dois, brasileiros, e a mão que passa o sabonete e contorna contornos. Após o instante infinitesimal de gosto e vida, um novo apagão. Treme agora com frio apesar da toalha embrulhar o corpo. Esgota-se o dia no cadeirão, manta nos pés, a cabeça pendida para um lado. Televisão estridente e popular. A comida é sempre a mesma, mas não se dá conta. Ela é a melhor cuidadora do lar, vai ao pormenor.

PILOTO DE RALIS

  A última grande esperança. Depois da elevada expectativa em ser o melhor jogador de berlindes, que não se concretizou por um problema espasmódico da minha mão esquerda; depois de perceber que não iria ser o maior matemático do mundo, com as notas humildes que consegui nos anos primários; depois de chegar à conclusão que estava longe de ser um Adónis, de muito me olhar ao espelho e de aos quinze anos ainda não ter dado um único, que fugidio, que depenicado, beijo na boca; ser o melhor piloto de ralis da estratosfera, não sabendo eu o que era a estratosfera – que me parecia bem e adequado às minhas ambições -, era o lugar no pódio do mundo que me estava reservado num futuro próximo. Os meus tios alugaram uma casa ao ano, durante anos, numa aldeia chamada Sobreiro, a poucos quilómetros da Ericeira. Como eramos uma família solidária, eles pagavam a renda e nós os primos, os sobrinhos, os amigos mais amigos, usufruíamos essa comodidade. Então, quase todos os fins-de-semana íamos para

Só falo do que sei, porque o vivo sentindo ou porque o sinto sonhando.

  ** Quando estou a voar, vejo-o como uma forma natural de ser que sinto e sonho. Eu voo mesmo. E praticamente todos os dias, nem sei dizer se ando mais ou se voo mais. Voo muito e bem. Executo esse movimento, esse impulso, sem nenhum esforço, como sendo automático em mim, o que dá garantias que na realidade, seja ela qual for, eu voo. Por vezes faço voos rasantes às coisas e fico com uma sensação de que a qualquer momento vou aterrar numa cabeça de um transeunte distraído com o que vem do alto e que está a passear o cão sem esperar que algo lhe caia do céu, ou numa mesa de piquenique apetitosamente posta num jardim, onde acabo por estragar o almoço de um casal nova-zelandês que veio fazer Erasmus. Enervo-me e fico mais desajeitado, o que se reflecte na qualidade do meu voo. Raramente, quando estou assim não consigo ganhar altitude, apesar do esforço imenso que faço no que supostamente será bater as asas, mas a verdade é que nunca as senti, nem a bater nem sem ser a bater, e não me lem

A VIDA SECRETA DA MONTRA*

Que árvores são estas que não lhes sabemos o nome? São árvores da vida e basta esse nome. Na rua as árvores perfiladas acompanham um carreiro de prédios baixos, anos setenta, agora com estilo, com uma pala de cimento na entrada e um alpendre, que seria galeria aberta se os prédios tivessem outro porte. Pequenas lojas, com uma moldura de vidro, quadrada, a montra. Do outro lado da rua, vivendas familiares. Pela sua dimensão e porque quase todas têm as portadas e os estores meio-corridos, sinal que são casas habitadas, não escritórios e têm cães que ladram. Um subúrbio, um dormitório de pessoas normais. A rua não tem um café nem uma mercearia e os carros passam em fluxos, de manhã cedo a saída para o trabalho, ao fim do dia o regresso a casa. Também as pessoas. Durante a semana velhos que vão provavelmente às compras, ao centro de saúde, fazer análises, crianças ainda pequenas pelas mãos levadas para a escola. Igualmente em fluxos, de manhã adultos e jovens passeiam os cães, ao fin

TODOS OS AMARELOS DO MUNDO

  O meu pai tinha sorte com os números, dizia ele. Uma vez, o meu avô esteve hospitalizado, não sei porquê, mas nada de grave, e ele foi visitá-lo. Quando saiu ficou com o número da cama onde ele estava a ecoar na cabeça. Era o número doze. Incomodado por uma fé súbita e muito intensa, palavras suas, comprou uma cautela de lotaria com essa terminação. Saiu-lhe o prémio grande e tivemos o nosso primeiro automóvel, um Toyota amarelo, com dois patos colados, nas laterais do capot . Já tínhamos uma moto (a minha) amarela, um capacete (o meu) amarelo e a agora um carro. Não sei se o meu pai pretendia açambarcar para si todo o amarelo do mundo, mas estava no bom caminho (e dos patos então nem falar. Penso que era para incomodar as pessoas, principalmente a mulher e os  filhos, ele gostava disso, apesar de lhe termos dito inúmeras vezes que não era uma boa ideia). Tendo uma viatura, tínhamos de lhe dar uso e fomos à descoberta do Algarve, a cidade de Lagos. Ficámos num quarto alugado, com ban

MÓVEL PHILIPS

  O meu pai, que trabalhava nas altas tecnologias do som e da imagem, a Philips, mas trabalhava pouco porque o que mais queria era divertir-se e fazer teatro amador, recheava-nos a casa com tudo o que havia de mais sofisticado: rádios-transistores de sensibilidade fina; televisores a preto e branco, no entanto panorâmicos e quase, quase a ver-se uma corzinha; utensílios de cozinha a darem com a minha mãe em doida, que mal sabia fritar um ovo e fazia questão ontológica de sublinhar essa sua posição, e um móvel tudo em um. Por ser o possuidor desse móvel tecnológico fui durante algum tempo o rapaz mais influente de todo o bairro do Restelo e asseguro que mereci e recebi deferências e estiquei-as o que pude, já que sempre soube que as oportunidades são poucas, aleatórias, e quando nos caem à frente de se esticar a mão e apanhar, ou estamos de olho aberto e aproveitamos, ou então, até que outra nos aconteça pode levar ciclos astrológicos e esses as vezes parecem intermináveis, e mal se s