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Mensagens

O SIMCA DO MEU AVÔ E MEU

  Não havia serviço de lavagem de carros. Quem tinha motorista era ele que os lavava e limpava, quem não tinha, arranjava-se, uns com mais outros com menos aprumo. Havia quem nunca lavasse os carros. Sempre houve e sempre haverá negacionistas. O meu avô que subiu à custa dos seus sapatos mas cansou-se no primeiro andar, teve o seu primeiro carro depois da reforma das ambulâncias postais. Não era bombeiro, era funcionário dos correios, e as ambulâncias postais eram vagões, geralmente na cauda dos comboios que descarregava e carregava o correio e as encomendas nas paragens e apeadeiros onde os comboios paravam. Reformou-se aos quarenta e sete anos e como arranjou logo um novo emprego de amanuense num escritório de despachantes de alfândega, comprou um carro. Antes teve de tirar a carta. Não praticou muito. Um Simca, um carro franco-italiano. Parecia um carro de estadista, era o único que tínhamos. O meu avô praticamente só andava de carro, no seu, aos domingos. Ou para irmos todos os da

OS MIRADOUROS ONDE ATRACAM BARCOS

  Antes da subida das águas que submergiram a cidade deixando somente os cumes suaves das colinas a descoberto, transformando-as em ilhotas flutuantes, casais de enamorados e mãos cheias de vontade de se darem, hipnotizados pelas ondas energéticas do amor que tudo pode, faziam juramentos de eternidade e companhia, encostados nos parapeitos dos muros dos miradouros enquanto debruçavam os seus olhos sonhando, nas panorâmicas da cidade. Olhavam para os telhados ocres, os zimbórios, as torres e a geometria das ruas e das praças. O mar deu-lhes um manto de água, afugou as cores. Onde foram jardins de belas vistas e tanto segredo segredado a acompanhar em sintonia o cicio do restolhar das folhas nas árvores em momentos de brisas suaves, são agora cais de amaragem, ancoradouros de pequenas barcaças de velas latinas e muita força de braços nos remos. Barcos que ligam as colinas-ilhotas. Sobrou desse fim do mundo, um punhado de gente, sem intenções de futuro. Sem nada mais para fazer senão

DESPERTAR

  Em que momento foi? Quando foi? Há memória disso? Quando deixaram de olhar para as meninas, como meninas, as da escola da dona Celeste, boa pessoa, quando vinham para o pátio, era o seu pátio, moravam no prédio, era deles, mas também era delas nos dias da semana, quando havia escola, a filipinha, adiantada para a idade, a saber coisas do seu corpo que as outras nem desconfiavam, e os rapazes, só pensavam na bola, dar chutos na bola, desconfortáveis com as meninas, elas a brincarem ao elástico, ao jogo do lenço, a fazerem coros e cantavam tão bem, e os rapazes a estragarem tudo, gritavam, atiravam a bola para elas, a sentirem-se afoitos, uns heróis aos olhos dos emperrados, os tímidos, há sempre destes, em todo o lado, elas a não acharem piada, desconsideravam-nos, e bem, a Filipa que tinha a despontar no seu corpo de menina, como as outras, uma transição, um fenómeno brusco, a nascerem e crescerem duas colinas de contornos cada vez mais evidentes, desenhados sobressaindo na camisa br

FIM DE SEMANA

  Percebemos que o tempo não conta a nosso favor quando começamos, com insistência, a receber telefonemas simpatiquíssimos, nem lhes demos o nosso número de telemóvel, convidando-nos para fazer gratuitamente um teste de audição, no dia e hora que quisermos, estão ao nosso inteiro dispor, e logo de seguida, ainda o auricular está quente da chamada anterior, uma companhia de seguros, centenária, dizem eles, nos oferece um seguro de saúde para toda a vida, sem período de carência, sem pagamentos de caução, com ou sem cancro, com a próstata inflamada ou rija que nem um pero saudável, e ainda estamos a digerir estas vantagens todas, a cabeça a andar à roda, é tudo bom, recebemos uma nova chamada, estamos na idade ideal, por isso nos contactam, para acautelar o futuro e se aderirmos já, a um plano de pagamentos por conta e suaves que nem se dá por eles, podemos vir a usufruir, quando for tempo disso, não há pressas, de um funeral digno de um estadista, de um político afamado, com fanfarra se

MANIPULADOR DE MARIONETAS

  * Encostados aos parapeitos das janelas, uns com a cabeça de fora, uns esticando a cabeça o mais que podem, pequenos, apoiando os queixos nos beirais para se aguentarem, uns mal se vendo os olhos, inchados de curiosidade, a saltarem das órbitras se puderem, ávidos para assistir ao que se passa, não vá caírem das banquetas onde equilibram os bicos dos pés, e perderem o lugar privilegiado. Todos a querer ver, ansiosos por serem os primeiros, para depois contarem aos outros que viram: estavam no local certo, à hora certa, a ver, são uns heróis. Ver a todo o custo e preço, mesmo que para isso se chegue à agressão, aos empurrões para desequilibrar os que estão no poleiro, e ocupar os seus lugares nos parapeitos das janelas. Querem assistir ao espectáculo, ao miserável entretenimento das misérias dos outros, uma projecção – que recusam a subscrever - das suas. E é tudo entretenimento, o que se passa na rua. Babam-se para assistir, serem meros espectadores, da vida a passar com os seus cort

A ILHA DE ÁCALA

  Homens e mulheres salgam peixe e fabricam garum , condimento apreciado. Cá fora, na orilha da água verde e pacífica, um areal dourado e seguro, duas crianças brincam com conchas e seixos, inventando mundos e utopias. Porque são crianças e brincam, estão abstraídas. No final da praia, pescadores curtidos, enrugados por sóis intensos dos dias passados assim, estão sentados nos passadiços do cais palafítico, reparam as redes. Partem logo, ao cair da noite. Está lua cheia, augúrio de boa pescaria. Alguém os visse no mar e seriam pirilampos, no efeito do piscar das velas de parafina batidas pelas brisas, que iluminam esparsamente as embarcações, ajudando as manobras, ou é para se sentirem mais seguros. Luz é vida,   Enquanto brincam, as crianças não sabem que do outro lado do mar feito do estuário de um rio, o sado, também há pequenas aldeias de pescadores e grandes produções de sal, a sementeira do mar. Na fábrica, que alimenta o império romano até aos seus confins e terra incógnita, a

O PARTO DIFÍCIL

  A mãe contava inapropriadamente, animada e não se poupando a arrebites - deixando-o embaraçado quando assistia, vá-se a saber as vezes que ela o contava sem a sua presença -, que o parto tinha sido difícil e de desfecho quase fatal, neste caso para ela, que assim tivesse acontecido não o poderia contar a ninguém e morreria com ela. Ela a encaminhar-se para o além esvaindo-se em sangue, ele sem respirar, muito tempo, arroxeado já, até que lá se deu autorização à vida, para aproveitar essa oportunidade, a de viver, uma lotaria que calha na conjugação dos astros e dos búzios, a poucos. Todos sobreviveram e a história acabou bem. Tenha que efeitos tivesse tido essa anoxia no seu futuro e em situações bem específicas em que precisava do oxigénio todo para decidir o melhor, a ideia atroz e muito injusta, de ter sido quase o responsável pelas perdas anormais de sangue da sua mãe, fizeram-no como se veio a fazer nem muito nem pouco encorpado, o suficiente. Do que não se livrou foi de uma t