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DESCUIDADOS DE DEUS- PONTO FINAL

A VIDA SEGUE Não lhe restando alternativa, a vida não se deteve no presente, continuou o seu imparável movimento para o futuro. Tudo acalmou, ao ponto de já ninguém se lembrar que Deus tinha um dia sido julgado num tribunal popular. Deixou de ser notícia, deixou de se a falar de uma coisa que não é fundamental.  Aparte pequenos e esparsos núcleos fechados, os homens foram perdendo a fé. Descomprimiram nas suas obrigações com o divino, ganharam tempo para cuidar de si e dos seus, frutificando uma nova espiritualidade, com raízes na terra, sem necessidade de se revirar os olhos ao céu com perguntas sem resposta, a forçarem a vista, esperando o quê? De ver o quê? e depois voltarem para dentro de casa, desiludidos, trazendo para a sua intimidade mais desconfortos vazios. O céu é bonito e pode-se fazer uma poesia, assim como o mar, uma árvore antiga, um mineral que não seja diamante mas reflicta como um caleidoscópio a luz do sol incidida em si. É nestas coisas que se enc

MANUAL DOS SOLITÁRIOS - CONTO DE NATAL

Enlameado até a décima quinta casa, se não for mais, o pastor e dono do cão farrusco, por lá continua serrania acima, serrania abaixo, pastoreando o seu rebanho de cabras e ovelhas. O farrusco, cada vez mais velho - a vida de cão-pastor obriga a muitas exigências do corpo - no seu papel de cão,  segue fielmente o dono, apesar de guardar cada vez menos seja que propriedade móvel (o rebanho e o patão), seja que imóvel (a casa na aldeia) forem. Deseja que o deixem em paz, um despegamento generalizado nos cães velhos. Ainda assim continua com aquela mania que não lhe sai da cabeça, sendo um mastim, que é um excelente cão de caça. Também já não vale a pena chamá-lo à razão. António o carteiro, aquele que tem uma Famel quase tão velha quanto ele, continua a distribuir cartas, agora raríssimas, desconsiderando-se para a contagem, as dos bancos e as das contas para pagar. António continua a gostar bastante de aguardente, e como em cada paragem nas raras casas ainda habitadas por

O HOMEM E O MAR - VELAS COM UMA CRUZ NO PEITO

** Ainda ontem homens em tudo iguais a Tertuliano, na natureza de serem homens, mas diferentes, por preencherem no seu espaço que se diz ser espírito, o espaço de indivíduos únicos, pensavam coisas talvez idênticas, encostados nas amuradas dos barcos onde navegavam. Barcos primitivos, sem instrumentos de orientação, só os humanos: atenção, observação, intuição, decisão. E quando (a) mar quer, quando se lhe carregam cenhos, ou porque o dia não correu bem, ou por assuntos domésticos, manifesta veementemente o seu carácter num rompante. Nem os homens nem nenhum barco feito por eles ficam a salvo da ira. Nada podem contra as forças obscuras, desconhecidas e por vezes brutais da sua natureza. Depois, quando aveluda, desculpa-se-lhe o mau feitio, apesar de naufrágios inúmeros e catástrofes irreparáveis. Após qualquer tormenta, baixa o manto da ausência de som, arrepia-se a pele numa sensação de plenitude e paz para quem, numa amurada, distrai o olhar sobre essa extensão ago

O HOMEM E O MAR - PENSAMENTOS SÉRIOS

III Não se imaginando o que possa ser, por doença ou acidente, a crueldade de uma cegueira e uma insensibilidade táctil aos elementos da natureza, como se poderia coerentemente explicar o mar, a uma pessoa nestas condições dificeis?   É uma explicação que não se explica. Dizer-se que é explicação, já é um exagero, é mais um convencimento para se andar com a vida para a frente sem remordimentos; uma justificação para si mesmo, rebuscada é certo, tipo: tinha de dar-te uma palavrinha…tínhamos de ter esta conversa . É um pacto educado, mas hipócrita, para não complicar a existência. Ninguém gosta de não ter explicações plausíveis para as coisas.   É nisso que Tertuliano agora pensa, uma vez mais e sendo recorrente, encostado à amurada do navio, vogando sem preocupações, nem tormentas, ele e o seu amigo cachimbo num côncavo, um útero protector, a sua mão esquerda. Para Tertuliano a mão que vale. Tertuliano quando pensa, e nisso não difere de outros homens, pensa olha

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - O PECADO

O tempo passou, naqueles saltos acrobáticos que por vezes se faz pródigo. Arménio completou a quarta classe e foi para a escola Comercial. Qualquer coisa Prazeres. As escolas necessitam de um nome, e dá-se-lhes nomes de pessoas. Como a cães e gatos, moda. São geralmente nomes com história, que a maioria dos alunos esquecem rapidamente. A quem interessa esses nomes? Andou dois anos a fingir que estudava. As disciplinas eram enfadonhas. Assuntos bocejantes, ainda por cima irrealistas. Uma escola comercial, como indica o seu propósito deve preparar os alunos para as áreas do comércio. Para isso existem as escolas comerciais, as industriais e os liceus (dos que vão para a universidade e depois mandarem nos que estudaram nas escolas dos dois primeiros tipos).   Existem para terem propósito, as escolas. Os alunos desinteressados assistem às aulas de professores frustrados a debitarem abstrações inúteis, ou então nas cadeiras teóricas, histórias de passados esquecidos,

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - O ABEL APANHA O ARMÉNIO EM FLAGRANTE

O Arménio só tira pastéis em dias alternados. É uma crença sua. Na chaputa e na faneca não toca. A meio do trajecto na volta da taberna, senta-se no chão com as costas encostadas à parede das cavalariças do solar dos Duques, onde esporadicamente faz serviços indiferenciados, mas o que verdadeiramente   lhe interessa, onde se sente inchado, grande, importante ao mundo, é   trazer com a rédea na mão - ele de estatura baixa -, os baios lusitanos – imensos, altos -, até ao cais de embarque. Vão para o Brasil, para os fazendeiros das enormes fazendas a perder de vista, é o que dizem, grandes apreciadores dos nossos cavalos, os lusitanos. No dia sim dos dias alternados de tirar pastéis, encostado ao muro, degusta relaxadamente a iguaria. Toma-se de todo o tempo para as papilas gustativas se inebriarem e depois fica esparramado, sem dar conta de si, a semi-olhar para o céu, a gozar o efeito alucinogéno do bacalhau a circular nas veias, depois de devidamente processado. C

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - PASTELINHO DE BACALHAU

Depois das aulas da manhã o Professor Abel almoça   no andar de cima da escola, a sua casa, talvez a última. Deixou a família morrer e não a foi substituindo, está sozinho. Não é que quisesse que toda morresse, mas sendo esse acontecimento obrigatório, podia ter-se precavido aumentando-a. Não o fez. É um homem de poucos convívios, não se lhe conhece o tempo do passado, de onde veio, de perto ou longe, se já foi feliz, ou foi sempre assim, como parece ser: uma pessoa desprendida, que cortou ou perdeu os fios-guia, que ligam a qualquer coisa ou coisas.   Tem por companhia única um livro a quem ele dá o braço, no pouco que sai, indo acompanhado desse livro sem título conhecido, se é sempre o ou mesmo, ou muda, não se sabe onde vai com ele. Mas um livro pode até ter vida, mas não é um ser vivente e como é natural nestes casos, e já se estava mesmo à espera, as pessoas falam e imaginam coisas. São férteis as imaginações. No fim das aulas de uma manhã, todas iguais, com