Enlameado até a décima quinta casa, se não for mais, o pastor e
dono do cão farrusco, por lá continua serrania acima, serrania abaixo,
pastoreando o seu rebanho de cabras e ovelhas.
O farrusco, cada vez mais velho - a vida de cão-pastor obriga a
muitas exigências do corpo - no seu papel de cão, segue fielmente o dono,
apesar de guardar cada vez menos seja que propriedade móvel (o rebanho e o
patão), seja que imóvel (a casa na aldeia) forem. Deseja que o deixem em paz,
um despegamento generalizado nos cães velhos. Ainda assim continua com aquela
mania que não lhe sai da cabeça, sendo um mastim, que é um excelente cão de
caça. Também já não vale a pena chamá-lo à razão.
António o carteiro, aquele que tem uma Famel quase tão velha
quanto ele, continua a distribuir cartas, agora raríssimas, desconsiderando-se
para a contagem, as dos bancos e as das contas para pagar. António continua a
gostar bastante de aguardente, e como em cada paragem nas raras casas ainda habitadas
por espectros-gente solitários, assume para si o ritual da aceitação do vinho
como sangue de cristo, agora transformado em aguardente, não recusa nenhum
convite a molhar o bico, acabando invariavelmente o dia em percursos de gincana
com a motorizada.
Esta tem poderes, parece ser gente, quase que se conduz a si
própria, e leva em segurança o dono para casa.
Tudo neste pequeno mundo, se encontra num momento de normalidade,
tudo menos as árvores que cada vez há menos. Este verão mais uma razia. Daria
até pena ao pastor olhar para as serras e vê-las despidas, anémicas terras
cinza-acastanhadas. Daria pena se ele a tivesse, mas não é homem para
sentimentos nem emoções à flor da pele.
Pode dar-lhe uma volta ao estômago ao ver o estado das coisas. mas
fica arrumada a revolta abafada até a próxima vez que olhar, muito
provavelmente amanhã, não tem outra
paisagem para pousar a atenção, a não ser as interiores, que são monótonas e
repetidas.
Aproxima-se o Natal. O tempo, é um estonteado de sucedimentos: começa
um ano e já se está no final desse com os pés virados para o
seguinte, para aqueles que não se ficam no que acaba e ganham
direito de passagem a mais um ciclo a juntar às suas biografias.
Este Natal, como os anteriores, esperava-se cenhudo, passado a custo, a olhar para
o borralho, mudo, não fosse este ano a novidade de a aldeia ter novos
habitantes.
Tantas e tantas vezes que o pastor já tinha pensado nisto, e não
era demógrafo nem sociólogo. Se há tanta casa vazia não fazia sentido não serem
ocupadas com sorrisos e choros e calores de gente viva. Pensava-o encostado de
costados a um granito ou com os queixos suavemente pousados no cajado,
perscrutando esses assuntos, a dactilografar para si um jornal imaginário da
vida inexistente da sua aldeia e das cercanias que compõem toda a lonjura
conhecida do seu mundo.
Foi desta. Uns senhores da capital, que ele nunca virá a conhecer
a menos que haja uma desgraça e eles venham lá de tantos quilómetros
longe, dar-lhe um abraço e dizer-lhe coisas que não entende, e ele ao lado
deles enquanto outras pessoas também estranhas seguram microfones nas mãos e filmam
os senhores e o pastor crédulo e bovinamente pacífico, apesar de se lhe ter
abatido uma desgraça, que não se espera aconteça.
Decidiram os senhores de Lisboa enviar com alarido e foguetório
três famílias de refugiados. Daí o circo de gente com fastio em bons carros
novinhos em folha, e o regimento de captadores de notícia por medida. Um teatro
que acontecerá muito em breve que ele nem sonha.
Quando o António carteiro lhe deu em primeira mão a notícia (sendo
carteiro sabe tudo primeiro do que os outros), ele não sabia o que queria dizer
a palavra “refugiados”, mas não o referiu para não dar parte de fraco.
Guardou a palavra na cabeça e quando o filho emigrado lhe
telefonou, perguntou o seu significado. Ficou ao mesmo tempo contente e
preocupado.
Contente porque ia passar a ter alguém a quem pelo dar os bons
dias e as boas noites quando atravessasse a aldeia com o rebanho e o cão
travesti (pastor-caçador, caçador-pastor); preocupado, porque o filho lhe disse
que os refugiados não são gente de confiar. Vêm de cara baixa, olhos no chão, é
tudo falinhas mansas e bons comportamentos, ensaiam as primeiras linguagens
gestuais, e quando as pessoas descontraem a acharem que têm novos amigos, tomam
conta de tudo e praticam o mal.
O velho pastor habituado à sua liberdade de caminhante em estado permanente,
nunca teve a necessidade de ter posse de terra, considera-a toda sua, porque a
pisa. E esta também é dos outros que lhe
dão outras utilizações, e desde que não haja muros e as possa atravessar
usufruindo da liberdade dos passeios, está garantida a sua sensação de posse. É
essa a aproximação mais fina do seu entendimento sobre “ser senhor do mundo” sem ter nada à sua
conta.
A pensar assim, acha ele, não havia motivos para desconfiança:
havia muita terra e muita casa livre, dava à vontade para todos.
Quanto ao fazerem mal, era uma coisa estapafúrdia: gente que foge
ao mal com falta de paz não vai depois fazer mal a quem disponibiliza um abraço
caloroso. A menos que sejam malucos, mas os senhores de Lisboa que sabem tudo
muito bem, com certeza que lhes farão todos os testes de maluqueira antes de os
enviarem para qualquer lado.
Pelo sim, pelo não, o Pastor convocou para uma assembleia municipal
o António da Famel, a mão
mal cheia dos espectros viventes nas redondezas, e incumbiu o farrusco como olheiro, para discutirem e
votarem um plano de acção para a vinda dos tais refugiados.
Na casa dele, amanhã na hora da janta. Vamos ver se o António
ainda chega em condições de entender o teor da assembleia, vamos ver no que no
que vai dar o decisivo camarário.
Entretanto o pastor desceu à loja da sua casa, para ver os níveis
da pipa de aguardente e encher um par de garrafas. A noite de amanhã iria ser
longa. O farrusco ficou esparramado em frente do fogo quentinho da lareira, a sonhar com perdizes.
Vamos ver no que isto vai dar. Os da cidade têm cada ideia! Para ele é uma coisa boa, vai ter companhia para o Natal.
Será que eles gostam de bacalhau?
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