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O HOMEM E O MAR - VELAS COM UMA CRUZ NO PEITO



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Ainda ontem homens em tudo iguais a Tertuliano, na natureza de serem homens, mas diferentes, por preencherem no seu espaço que se diz ser espírito, o espaço de indivíduos únicos, pensavam coisas talvez idênticas, encostados nas amuradas dos barcos onde navegavam. Barcos primitivos, sem instrumentos de orientação, só os humanos: atenção, observação, intuição, decisão.

E quando (a) mar quer, quando se lhe carregam cenhos, ou porque o dia não correu bem, ou por assuntos domésticos, manifesta veementemente o seu carácter num rompante. Nem os homens nem nenhum barco feito por eles ficam a salvo da ira. Nada podem contra as forças obscuras, desconhecidas e por vezes brutais da sua natureza. Depois, quando aveluda, desculpa-se-lhe o mau feitio, apesar de naufrágios inúmeros e catástrofes irreparáveis.

Após qualquer tormenta, baixa o manto da ausência de som, arrepia-se a pele numa sensação de plenitude e paz para quem, numa amurada, distrai o olhar sobre essa extensão agora em quietude.

Mar é enigma e mistério, mesmo depois de descobertos e conhecidos todos os novos mundos, mesmo depois de navegado um milhão e mais de vezes, em todos os sentidos cardeais que marcam a quadricula do planisfério. Mar é uma, muitas, epopeias de versos escritos e sem final à vista, um poema infinito, ou pelo menos, até ao derradeiro dos dias, na forma como se conhecem os dias.

Ainda ontem, é verdade, navegavam costa abaixo, homens da sua terra, tementes aos deuses e às tempestades, ensaiando a exploração dos mares e do mundo, em naves na aurora das tecnologias. Encostados ao bom bordo das suas caravelas, pensavam nos seus, nos que provavelmente nunca mais voltariam a ver, ou então eram atravessados por abstrações quiméricas, ou simplesmente estavam ali - o momento - admirando a beleza daquela paisagem de espanto.

Homens que partiram em busca de sobreviverem à vida, sempre a puxar para a morte, fugindo às condições adversas, à fome e miséria garantidas. Ficar era morrer mais cedo. Partir podia ser morrer amanhã.

Alguns escolheram o risco, e foram  esperançosos, uma migalha é melhor que nenhuma migalha. Iam guiados por um punhado de visionários, os utópicos, os loucos mais sensatos que se conhecem. Dão margem nas suas vidas para viverem as aventuras dos irrealizáveis, das quimeras impossíveis, e no final da jornada, não é que alguns adormecem cheios e fartos, esboçando um sorriso na cara?

Estes marinheiros olham para a costa a ver que querem ver a terra, não se perderem dela, a sua orientação. Olham desde o mar, em movimento, para bem a verem, no bom bordo, protegidos. Entretanto do inesperado, golfinhos foliões rompem a linha da pele da água, em acrobacias e piparotes. Acompanham num deslizar veloz o deslizar pesado deste objecto, uma caravela renascentista, que leva uma cruz vermelha nas velas enfunadas. E isso os golfinhos nunca viram, não sabem o que quer dizer. Parece que é a cruz que os puxa para a frente, rumos desconhecidos, para descobertas não se sabe do quê.

Foram longe esses homens, descobriram terras e pessoas, e estas outras receberam-nos a eles, quase sempre bem, porque achavam estar a ver deuses, e nunca se está preparado para esse primeiro encontro. Quando se dá de caras com os deuses pela primeira vez, a alegria e o respeito são inexprimíveis e naturalmente o ânimo é forte. As desilusões vêm depois.  

A troco de espelhos, fortunas imensas: ingenuamente deram o que tinham. Dá-se sempre o melhor que se tem a um visitante, mesmo que depois,  o venha a expulsar da sua terra-mãe,  útero da sua identidade individual e colectiva. Haverá sempre gente genuína que dá tudo.

Estes marinheiros e os seus visionários capitães, deram voltas e voltas ao mundo, até serem capazes de identificar com os olhos encerrados, todas as curvas, os paraísos, as visões de tirar fôlego, o feitiço da pequenez perante um espaço aberto e belo, os sítios ermos e desinteressantes, as trevas e a escuridão húmida, fria, assustadora.

Esta meia dúzia de gente tímida e sonhadora, tornou-se ainda mais intima do mundo, bateu-lhe em todas as portas e apresentou-se.

Umas vezes deram-se bem com os outros, outras chacinaram, cometeram arbitrariedades feias. Deixaram o símbolo dessa cruz colado ao chão, em descampados abertos para  serem vistos por muita gente, uns tementes, outros raivosos. 

Deixaram uma língua nova, de numerosas palavras, ensinaram a alguns a construir boas frases com elas. Nem sempre, quase nunca, quiseram aprender as línguas dos outros: as manias que os homens têm de ser arrogantes. A seguir vieram-se embora. Trouxeram para casa histórias para contar, nostalgias, colares de missangas. As grandes riquezas, os tesouros, vieram carregados em cofres fechados a sete ferros,  propriedade dos donos desses homens. Há sempre escravos.

Tertuliano é nome antigo, dos romanos. Terá com certeza havido um, com esse nome, a navegar nessas barcaças da cruz. Homónimo do nosso, que agora voga o pensamento-sonho, enquanto afaga o cachimbo entretanto apagado, mas ainda quente.

Agora é imediato no navio “Pátria”, na carreira dos portos das colónias, que os portadores da cruz nas velas  descobriram. É um excelente marinheiro, porque ama o que faz e humanizou só para si, o mar, a quem chama mulher. 

Essa poligamia, duas mulheres em sítios diferentes, duas vidas postas a correrem paralelamente, não lhe dá paz. Porque é um dilema sem solução. Ele ama igualmente, diferentemente, mas com a mesma intensidade, as duas. Não pode escolher, porque seria abdicar, isso era perder uma parte para sempre. Ele não quer perder, só ganhar. 

Que estranha forma de vida, os caminhos que o amor armadilha.


**Desenho de aluno da Escola João de Deus - Faro



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