A VIDA
SEGUE
Não lhe restando alternativa, a vida não se deteve no presente,
continuou o seu imparável movimento para o futuro. Tudo acalmou, ao ponto de já
ninguém se lembrar que Deus tinha um dia sido julgado num tribunal popular.
Deixou de ser notícia, deixou de se a falar de uma coisa que não é
fundamental.
Aparte pequenos e esparsos núcleos fechados, os homens foram perdendo a fé.Descomprimiram nas suas obrigações com o divino, ganharam tempo para cuidar de si e dos seus, frutificando uma nova espiritualidade, com raízes na terra, sem necessidade de se revirar os olhos ao céu com perguntas sem resposta, a forçarem a vista, esperando o quê? De ver o quê? e depois voltarem para dentro de casa, desiludidos, trazendo para a sua intimidade mais desconfortos vazios.
Aparte pequenos e esparsos núcleos fechados, os homens foram perdendo a fé.Descomprimiram nas suas obrigações com o divino, ganharam tempo para cuidar de si e dos seus, frutificando uma nova espiritualidade, com raízes na terra, sem necessidade de se revirar os olhos ao céu com perguntas sem resposta, a forçarem a vista, esperando o quê? De ver o quê? e depois voltarem para dentro de casa, desiludidos, trazendo para a sua intimidade mais desconfortos vazios.
O céu é bonito e pode-se fazer uma poesia, assim como o mar, uma
árvore antiga, um mineral que não seja diamante mas reflicta como um
caleidoscópio a luz do sol incidida em si. É nestas coisas que se encerra o
mistério, o milagre das coisas do divino.
FINALÍSSIMO
A verdade é uma só: Deus, depois de fazer a criação, cegou. Quem
o poderia saber se ninguém o viu ao perto para depois nos vir dizer? Os que
estão ao seu lado, não voltam para contar.
Sim, também Deus cega. Por cansaço não foi. Foi porque naqueles
sete dias loucos em que teve sobre si os trabalhos da criação de tudo, Ele
focou a minúcia do seu olhar microscópico, como um relojoeiro suíço, sobre os
seres que estava a moldar. E fez assim porque queria atingir a perfeição, não
deixar nada incompleto.
Concentrou tanto que se esforçou de mais e cansou a vista, e
cegou. A Deus aconteceu-lhe esse percalço, e se calhar não estava à espera.
Acabou a tempo de acabar e a partir desse momento deixou de ver.
Nem sequer viu a obra feita. E é por a não ter visto, por a não poder ver, que
não percebeu as pequenas falhas, se as houve.
Há no entanto queixume: os homens porque não foram feitos
imortais, os animais mais próximos deles, porque não estão feitos tal e qual
homens, outros seres em escalas mais baixas porque não se aproximam dos que
lhes estão acima.
Nunca ninguém está satisfeito, mas Deus não o pode saber, porque
não vê os pequenos defeitos, os arremates finais em falta, de nenhum deles.
A razão afinal é bastante simples, tão simples que pode parecer
ridícula, um final airoso e fácil para acabar de vez com a história.
Deus não pode durante o julgamento dar nenhuma explicação porque
Ele não a tinha para dar. Deu o seu melhor, não teve tempo para acabamentos
porque exauriu dos olhos. Não sabe, não sabia até o dia deste julgamento que
tinha criado o mundo com pequenas gaffes,
e quando é assim, o que pode parecer pequeno e insignificante, para quem está
na pele assume proporções enormes, e para os homens como para os símios, os
golfinhos e os elefantes e as abelhas - entre outros - faltou-lhes um mínimo
nada, para serem o máximo de tudo.
Quando se apercebeu disso, que a cegueira lhe tinha tirado o
juízo da matéria criada e moldada, Deus solidarizou-se com os homens e os
animais, mas já não havia nada a fazer.
Fica para eles a possibilidade do perdão, perdoarem a Deus,
porque a sua doença do esforço demasiado, infelizmente, já não tem cura.
Cá em baixo na Terra, no espaço-tempo do dia-a-dia, os macacos,
os cães, os golfinhos e as orcas, os elefantes que restam e as abelhas poucas, inventaram
uma cosmogonia centrada no homem e começaram a adorá-lo deus, foi nesse dia que
se tornaram humanos.
Por seu lado,os homens eternos insatisfeitos, amarguraram ainda mais, apesar
de disfarçarem ateus.
Faz muita falta um Deus que veja, e a eternidade também.
Pintura: Savaoph God the Father 1885-96, Mikhailovich Vasnetsov
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