III
Não
se imaginando o que possa ser, por doença ou acidente, a crueldade de uma
cegueira e uma insensibilidade táctil aos elementos da natureza, como se poderia
coerentemente explicar o mar, a uma pessoa nestas condições dificeis?
É uma explicação que não se explica. Dizer-se
que é explicação, já é um exagero, é mais um convencimento para se andar com a
vida para a frente sem remordimentos; uma justificação para si mesmo, rebuscada
é certo, tipo: tinha de dar-te uma
palavrinha…tínhamos de ter esta conversa. É um pacto educado, mas
hipócrita, para não complicar a existência. Ninguém gosta de não ter
explicações plausíveis para as coisas.
É nisso
que Tertuliano agora pensa, uma vez mais e sendo recorrente, encostado à
amurada do navio, vogando sem preocupações, nem tormentas, ele e o seu amigo
cachimbo num côncavo, um útero protector, a sua mão esquerda. Para Tertuliano a
mão que vale.
Tertuliano quando pensa, e nisso não difere de
outros homens, pensa olhando para um algures, longínquo, precisamente situado
na linha de fronteira entre o finito e o infinito (achando-se este nomeado
infinito, a partir do momento em que se deixa de poder ver). Outros homens
pensam de olhos fechados. Ninguém consegue pensar com os olhos distraídos.
Pensa Tertuliano no mar, o assunto que afinal
ocupa a sua vida. Ela (a mar) e Custódia. Não o demonstra efusivamente
carinhoso, porque é um jeito de ser assim, desse tempo, mas por dentro, no
dentro de si, é um amor escaldante, como uma lava vulcânica, a ameaçar
soltar-se e derramar-se no exterior, sempre impedido de o fazer pela noção pessoal
de decoro, de contenção, que este homem desenhou para si como o boneco da sua
pessoa.
Custódia conhece-o bem – acha - se alguém
conhece alguma vez alguém. Não desconfia, sabe com toda a certeza de uma
experiência cientifica que se fizesse as entranhas do seu homem, que ele a
ama, não o dizendo mas dizendo-o quando
a beija, a abraça, no final de uma viagem pelos mares, e chega a casa carregado
de uma vontade inexprimível de a ver. No dia a seguir à sua chegada. Dão as
mãos e passeiam pelo bairro, uma forma que têm, quase banal, de se amarem.
Por vezes não são precisas as palavras, para
dizer.
Agora Tertuliano, inclinado sobre a amurada do
navio, pensa. Ajeita ao pescoço a gola da camisola da lã. Faz quase sempre
frio, o mar é húmido.
Já se viu não ser possível descrever o mar para
quem não o viu, tocou, molhou-se nele, ainda que levemente. A mais minuciosa e
séria das descrições, pode até conseguir uma boa aproximação a uma coisa, de
todas as que compõem a existência do mundo, mas para o mar isso não é possível:
dizê-lo exige a presença de todos os sentidos disponíveis.
Aqui, como já se viu noutros temas, entra a
história do sonho. Quem não vê, não toca, tem um vazio por preencher, uma
lacuna, e então, para se compensar, sonha. É a única maneira confiável, de
preencher o nada que reveste o dentro. Sonha, mas ainda assim, não pode sonhar
por antecipação de adivinho, a consistência do real, com certeza, de como se
apresenta e é o mar. De verdade.
Como pode um pastor de ovelhas chegar a este
ponto? Perguntar com esta intensidade? Perguntas tão complicadas, intricadas,
difíceis de deslaçar? Tanto caminho percorrido num tempo tão curto, desde que
saiu num comboio, o inicio da sua viagem de circum-navegação. Suaves colinas
verdes-castanho, uma terra interior, um mar de palha, a fazer as fronteiras da
cidade, mares verdadeiros a reduzir a ilhas todos os continentes.
Neste instante, protegido de cair num abismo
fluido, com a mão livre bem agarrada ao corrimão de madeira envernizada do
navio, este homem pensa assim. Tão fortemente, e sério, num insondável
mistério, nos mistérios desta terra e águas onde habitam homens e outros seres.
Tertuliano é filósofo. Pelo menos é um homem que tem curiosidade. Se isso não
basta para dizer que é filosofo, é então qualquer nome que se queira dar ao seu
desassossego.
Qual é a natureza do mar? sê-lo. Não dizível,
não decifrável.
Lembra-se neste momento em que isto se lhe
esvoaça na cabeça, dos daguerreótipos a sépia, tirados por alguém, esquecido,
quando era pastor, e navegava nos mares imaginados por um adolescente, em ondulações
suaves, nos declives mansos das colinas nos montes da sua terra.
O tempo
que passou desde esses momentos, foi um nada de tempo, mas na realidade, para a
sua pequenez de homem irrelevante , foi o tempo de uma eternidade. Ontem
camponês, hoje navegante de grandes epopeias, as suas, pessoais, cada um faz a
sua, há quem lhes chame tragicomédias.
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