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FLORES DE ABRIL

Abril é o mês em que as pétalas de todos os nomes de flores se espreguiçam na sua plenitude insinuante, provocando os transeuntes distraídos. Não sei se será assim de verdadeiro nos manuais da botânica: todas as flores florirem ao mesmo tempo - tenho incómodos com as ciências exactas, o que amplifica muito as minhas imprecisões- mas inventei uma crença sobre esse desabrochar avassalador, e até que me desconvença não arredo pé de uma ideia que me parece decente, para não dizer honestamente apropriada. Todas florescem em Abril, até as sardinhas, que sendo peixes, são as flores do nosso mar. Saltam vivinhas e malandras, espelhando dourados ofuscantes na reflexão dos raios do sol – insinuantes os raios que ensaiam iridescências do verão que se anuncia. Como são flores – naturalmente femininas e vaidosas - fazem-se convencidas nas suas exuberâncias sensuais, apresentando os vestidos mais atraentes, na plenitude da jovialidade. A frescura das suas pétalas tira-nos do sério

UM ANJO

Hoje cruzei-me com um anjo, numa paragem de autocarro. Andam por todo o lado, principalmente nos locais menos prováveis. As pessoas dizem que não os veem, não os encontram, porque andam tão assolapadas nos seus aturdimentos da vida, que só olham e não veem. Este anjo apresentava-se banal. Não irradiava luminescências, nem outros fogachos de artifício. Era um ser simples disfarçado em cão. A don a, um ser igualmente lindíssimo, afagava-o na paragem do autocarro. Afagava-o mas não o via, não podia. O cão-anjo, cumprindo a rigor os preceitos das entidades angelicais, estava simplesmente presente, derretendo-se com as carícias da dona. E olhava-a dizendo precisamente isso: amor. “Aqui estou para te guiar e tu comigo para me fazeres festas, que é o que mais gosto". Vi hoje um anjo, e fiquei especado e parvo a vê-los os dois amando-se perdidamente em plena via pública. Ganhei este fim de dia de Abril ensolarado. Que raio de mês este, que mexe tanto comigo!

QUE BOM, ABRIL DE NOVO

Hoje o dia nasceu em desmesuras e exuberante. Talvez por ser Abril. A passarada, o Sol quente, a luz brilhante, não se deram a trabalhos: irromperam. E nós, ansiosos por Abril, aperaltamo-nos de contentes. Se começa assim, vai ser um bom mês, o que aumenta as expectativas. De todos os meses do ano – cada um com os seus encantos – Abril sempre trouxe grandes esperanças. É por isso que estamos como crianças irrequietas. Soltamo-nos mais convencidos, e bem, que as trevas dos frios invernos ficaram para trás. A Primavera é o renascimento, mas para nós conta a dobrar: as flores que desabrocham, são as flores que trazemos na lapela, e não as aguentamos na mão excitados de as oferecer. Supimpa e inolvidável este Abril, esperamos que siga o seu caminho e nos embale soltos e confiantes até ao fim do ano. O doce calor do renascimento anima-nos tudo, é a nossa fotossíntese. 

O SUICÍDIO

No reino animal o suicídio acontece pouco. Acontece julgamos nós (que não estamos na cabeça dos animais) sem razão pensada deles, por desencadeamento de mecanismos dúbios. Só os homens o fazem por vontade própria, e geralmente tomam tempo para decidir a forma e o momento, ou quando estão encurralados. É um acto difícil de julgar. Cobardia para uns, da maior das nobrezas em espíritos de índole romântica. Seja como for é uma decisão de grande responsabilidade, mesmo para os partidários da amoralidade nos acasos do universo. Tento entender essa possibilidade, compreender os becos sem saída, o cansaço absoluto, a situação terminal. Não sei o que me espera e ainda bem. Lamento não estar confortável com conjugações  karmicas , chamamentos a paraísos paradisíacos, sacrifícios humanos para ganhar a vida eterna. A minha espiritualidade, boçal e eventualmente mesquinha, resume-se a cumprir a única existência que conheço: este momento. Amanhã, gosto de olhar para o

RIO DE ONOR: A FRONTEIRA INVISÍVEL

T odas as manhãs andam os dois numa trabalheira: o cão, enorme, todo branco com uma mascarilha farrusca no focinho, a dar-se ares de encapuzado, e o pastor ensimesmado e de falas nenhumas. Nunca se lhes viu trocarem uma palavra, apesar de andarem há anos juntos. Uma aldeia no fim do mundo, ou no princípio. Uma linha imaginária a traçar um meio, uma divisão territorial abstracta nas gavetas dos burocratas. De um lado Portugal, do outro a Espanha, sem diferenças, afinal sem lados. Só os transeuntes raros e vagos, põem nos óculos esses filtros, porque leram algures, ou ouviram dizer algures que neste povoado comunitário – metade de uns, metade de outros – as pessoas coexistem sem fronteiras, o que de si dá o tom sensacionalista à notícia: uma aldeia excêntrica onde duas nacionalidades comuns coabitam. Partilha do mesmo espaço, em casas de granito com telhados de xisto, que se espelham num rio cristalino nos dias em que o sol projecta imagens. Para se chegar a es

CARTA A SCHAUBLE

U m olhar carregado de ódio. Não é culpa nossa. A vida distribui as suas partidas por cada um, acima de tudo devemos ser decentes com os outros. Não temos culpa. Na fragilidade com que se nasce, vir a ser forte é um desfecho sublime. E muito bem pensado. Só se pode ser “forte” para ajudar os outros a crescerem, enquanto nós também crescemos.  Ser forte porque se ganha o arbítrio de pisar as “beatas”, é debilidade. Ser irredutível nas ideias é debilidade. Centrados sobre as nossas existências diferentes, quiçá difíceis, perdemos a lucidez do real. Ou seja, só o vemos à distância das nossas sombras. Escapa-nos a perspectiva. Às voltas e às noras com as obsessões, vemos desfocado. Amesquinhamo-nos. As decisões que decretamos ao mundo envinagram-se. Decisões dessas não são das boas, são chicotadas masoquistas. Nessa loucura chegamos mesmo ao ponto de deixar de ver, e ouvir, temos as conversas dos outros por débeis e fracamente inteligentes, inebriados pelo re

“A troika pecou contra a dignidade”.

São  deuses, e olham para os infernos com o enfado natural dos deuses, porque não há seres superiores aos deuses que julguem as suas criações imperfeitas. E assim se peca sem castigo, cometendo todas as obscenidades sem que os mortais reajam. Ainda ontem  açanhavam os olhos aos seus pequeninos estendedores de tapetes - dizendo-lhes que já estavam a relaxar nas reformas.  Estes tremelicando para conseguirem o “ quadro de honra ” logo foram pressurosos ao balcão mais próximo de uma qualquer Goldman Sachs , depositar por adiantado uma fatia do espúrio  para pagamento de juros ( são os juros que eles querem pagos a horas,  que a divida propriamente dita, nenhum país paga: é um conceito virtual).  Hoje, porque lhes convêm para enviar os gregos para as trevas, ou pô-los obedientes e bem adestrados e validarem as suas teorias da ditadura do dinheiro e dos interesses próprios, voltamos a ser o exemplo. E o ansioso que estamos por ser exemplo do retorno a níveis de pobreza