Todas as manhãs andam os dois numa trabalheira: o cão, enorme,
todo branco com uma mascarilha farrusca no focinho, a dar-se ares de encapuzado,
e o pastor ensimesmado e de falas nenhumas. Nunca se lhes viu trocarem uma
palavra, apesar de andarem há anos juntos.
Uma aldeia no fim do mundo, ou no princípio. Uma linha imaginária
a traçar um meio, uma divisão territorial abstracta nas gavetas dos burocratas.
De um lado Portugal, do outro a Espanha, sem diferenças, afinal sem lados.
Só os transeuntes raros e vagos, põem nos óculos esses filtros,
porque leram algures, ou ouviram dizer algures que neste povoado comunitário –
metade de uns, metade de outros – as pessoas coexistem sem fronteiras, o que de
si dá o tom sensacionalista à notícia: uma aldeia excêntrica onde duas
nacionalidades comuns coabitam.
Partilha do mesmo espaço, em casas de granito com telhados de
xisto, que se espelham num rio cristalino nos dias em que o sol projecta
imagens.
Para se chegar a este sítio o carro despede-se da cidade. Também
esta um isolamento, ainda assim com gente circulando ou passeando (não se sabe)
nas ruas. Derramando-se algumas em cavaqueira solta nos cafés com nomes de
outras terras: café Lisboa, café Parisiano, o Central - todas as cidades têm um
café Central.
Esta geografia agreste mas muito bela, convida ao recolhimento:
“nove meses de inverno, três de inferno”. Os ditados são sempre infalíveis,
revelam a nudez das coisas em palavas simples.
Atravessa-se um planalto despido de sinais humanos. Pelo caminho
um aeroporto sem aviões. Está ali como símbolo, símbolo de quê? Do progresso
das ligações rápidas entre dois pontos distantes. Aqui isso não funciona:
ninguém quer aterrar no meio do nada; ninguém do nada quer voar para onde está
tudo. São duas posições, ou melhor, declarações de princípio incompatíveis e
irreconciliáveis: o nada e o tudo.
No aeroporto que até tem uma torre de controlo, a única
manifestação de vida é um catavento de riscas vermelho e branco – medidor de
direcções - que destoa dos tons verde e castanho, o arco-íris das cores da
terra nesta altura do ano.
Depois do planalto, no recorte de uma muralha salpicada de neve
nos cumes- terras da Sanabria – começa-se a descer ziguezagueando curvas
apertadas e estreitas até se chegar ao portão da aldeia. Portão que não existe mas
que cola bem que a ideia de um paraíso: só entram os eleitos.
Mal se sai do carro e se fecham portas ouve-se o ladroar dos
cães, mesmo assim um ladroar educado, a espaços, de baixo volume, como manda a
boa educação dos cães. Nos intervalos, o som do nada. Quase todo o tempo neste
povoado é um intervalo.
Pelas manhãs em horas matinas de névoas frescas, o farrusco e o
seu chefe, atravessam as ruelas silenciosas engrossando a procissão das ovelhas
e das cabras que nos seus automatismos de transumância saem ordenadas das lojas
do casario. Estas são o celeiro e os currais, o rés ao chão das casas, o local
onde se guarda a riqueza das gentes: os produtos paridos da terra, os animais
da maior estimação.
O bafo quente dos habitantes animais compactados nas lojas, faz
o aquecimento do piso de cima, onde os habitantes homens recolhem à noite para
remoer recordações com os olhos fixos nos braseiros.
Quando se fala, não se fala nem a língua de Castela nem a da
Lusitânia, fala-se numa comunicação própria, costurada anos e anos nos convívios
das gentes da aldeia. Se assim se entendem é porque entendem tudo, a sua língua
é rica.
O gado todos os dias vai à sua vida - rotina em círculos - conduzido
pelo pastor, aqui não existe especialização, todos os membros desta a
comunidade mal medida de uma centena de almas comungam de todas as funções,
menos a de padre, claro está! Que essa só para representante autorizado.
Assim que pastores são todos, em calendário rotativo, assim como
a cozedura do pão é feita no mesmo forno. Até as grandes decisões são tomadas
na praça pública, recanto à sombra de uma árvore frondosa, que não podemos
nomear com essas amplitudes de espaço grande, mas que aconchega os suficientes
para legitimarem as assembleias.
O residente mais jovem tem mais de sessenta anos, e foi
importado. Excelente idade para se ser o mais jovem. Mimam-no como se fosse uma
criança, e na verdade é.
Resolvido o engarrafamento do tráfego ovino matinal, a aldeia
mergulha de novo na suspensão do tempo, com recortes de seres trajados de
negro, curvados a remexer a terra, ou talvez a acariciá-la. Veem-se ao longe e
quem vem da cidade não distingue essas subtilezas.
A geografia desta terra, um recôndito embrulhado nos vales, não
convida a roteiros turísticos. Quem a procura, fá-lo determinadamente, com decisão
tomada desse propósito, sabe ao que vai, não a procura por engano ou equívocos
de turista incauto na descoberta de acasos fotogénicos.
Quem vai até esse fim, vai porque precisa de ir, de percorrer
uma vez mais a pé a aldeia, para se assegurar e aquietar de que as casas continuam
de pé, que não foram violentadas por nenhum material estrangeiro, que as
desfearia da sua identidade única.
Os poucos rostos que se cruzam, sem se lhes ver os olhos (de que
cor são esses olhos?), são rostos íntimos. Intimidade que nunca foi mais longe
que a expressão de um “bom dia”, mas basta este diálogo profundo para nos
assegurarmos que tudo continua igual e ali, como se espera e anseia de um local
suspenso, a nossa aldeia.
Quem vai, vai para carregar-se de energias puras, vai pelo
impulso irracional e telúrico de voltar à terra onde não nasceu biologicamente,
mas por decisão posterior da sua razão. Vai com o amor incondicional e louco de
revisitar o lugar que lhe faz palpitar o coração de saudades quando está fora.
No fim ou no princípio do mundo - para mim no centro do mundo -
a minha aldeia é o local mais cosmopolita e diverso, é onde sinto a paz das
gentes simples, o meu exercício de sublimação.
Não é fácil chegar a Rio de Onor –o nome da minha aldeia - e
ainda bem, que se preserva de companhias indesejáveis.
Se um dia quiserem lá ir, vão preparados: espera-vos um caminho
de desafios e privações, uma iniciação do despojamento. Só é merecedor do
prémio final quem apreciar a beleza sem maquilhagens, singela portanto.
Ela está lá no cimo de tudo, no mais longe das lonjuras, mas
vale a pena o caminho.
Magnífico! Parabéns!
ResponderEliminarA abertura do Fugas/PÚBLICO às dicas mostra a excelência da escrita sobre lugares com alma.
ResponderEliminarEm particular, o texto sobre Rio de Onor é um bom exemplo.
Parabéns ao autor e ao jornal que lhe deu visibilidade.
Amílcar A.