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Eram duas, um pelo menos era hippie e lia um livro

 

Ontem, sentado na esplanada e mimetizado por outros utilizadores presentes nesse espaço a essa hora, e nenhum, que me tivesse apercebido interessado no que a seguir relato, vi duas mulheres lendo, enquadradas na vegetação. Creio que eram duas, não posso garantir, a minha posição relativamente a elas, não era a melhor.

A princípio desconfiei, mas dei o benefício de perceber antes de lançar um anátema, que é pior que um perjúrio.

À parte a parte toda nas cadeiras das esplanadas e os bancos residentes dos jardins, as outras mulheres e os outros homens que preenchiam os lugares, sentados os seus corpos neles, não liam e nem sequer falavam. As pessoas falam muito pouco com os outros. Julgam que o fazem, mas falam ininterruptamente para si mesmas para não ter de ouvir os outros.

As pessoas presentes nesse momento neste espaço de lazer da cidade, faziam o que normalmente fazem todas as pessoas orientadas: organizam a sua vida, os contactos e o lazer, auxiliados pelos telefones portáteis e as tecnologias. Algumas liam o Correio da Manhã, porque eram idosas, não era só por isso, só por serem idosas e pôr as pessoas em caixas não é saudável. As pessoas mais idosas gostam de drama, para poderem reclamar que a vida é miserável, o mundo perigosíssimo, e a culpa não é deles o terem deixado assim, até lhes convêm que esteja assim, para se lamuriarem e irem para casa convencidos que no seu tempo é que era, quando o tempo não é de ninguém por ser uma abstração, ainda por cima vaidosa.

Enquanto isto acontecia - o que não era anormal porque só eu dei conta, que me tenha apercebido dessa actividade subversiva - duas mulheres  iam um livro em plena luz do dia, redondamente despreocupadas, omitindo mesmo, as lamurias dos velhos que liam o Correio da Manhã.

Enquanto isto acontecia, excluindo eu e os frequentadores da esplanada, as empregadas brasileiras que entretinham os meninos dos seus patrões nos baloiços e outras ofertas lúdicas, muito pouco atentas às crianças mimadas e muito atentas com a sua interacção digital, os que cruzavam o jardim para chegarem mais rapidamente ao seu posto de trabalho, vá-se saber porquê, podiam ser médicos ou padres, ou só financeiros, profissão indiferenciada que não me parece gostem de livros. Todos, e mais os homens musculados com roupa justa a quererem parecer ainda mais musculados e que poderiam também ser médicos ou padres, ou consultores financeiros indiferenciados e gestores de investimento branqueado, mas que afinal, só por serem assim, é pouco provável que homens demasiadamente musculados e financeiros por acumulação de funções, gostem de livros.

A atravessar os jardins, que sejam identificáveis, já não há padres e como tal não se viam a passar, a menos que passem vestidos como nós, pecadores incluídos. Se os há, andam disfarçados, à civil, homens em nada diferentes. Parece que já não gostam de ser padres, disfarçam por quê?

E por que vi eu duas mulheres supostamente a lerem um livro e isso é motivo suficiente para ser assunto? E estar aqui a falar dos padres camuflados.

Porque praticamente não se vê ninguém a ler em espaços públicos e porque sou um observador por ocupação de tempo com qualidade e apuros desenvolvidos desde pequeno, sendo uma actividade que me dá muita realização pessoal. O motivo de ser assunto é porque são logo duas a ler ao mesmo tempo, quer dizer, estão ao mesmo tempo, cada uma a ler um livro diferente, sentadas ao lado uma da outra.

As insuspeitas leitoras, uma com estilo de hippie, a outra indefinida no estilo, liam dois livros e isso garante-se, só por muita casualidade é que seriam os mesmos. Era coincidência a mais aparecerem duas mulheres desconhecidas de ambas, vindas de direcções diferentes, sentarem-se no mesmo jardim a ler, cada uma para si, o mesmo livro. À distância é impossível apurar quem lê boa literatura e nem se sabe mesmo se liam literatura. Que eram livros, podia-se concluir pelo formato e pelo estilo das capas. Não eram relatórios de contas nem planos de negócio. Nisso há certeza. Ninguém no seu juízo lê um relatório de contas, numa atitude corporal meio displicente, sentado num jardim.

Demonstrarem esse gosto, num espaço público é coragem, ficam também assinaladas por esse  acto temerário, que poucos outros cometem por falsos pudores, e reputações a defender.

Mesmo não sendo mulher, o observador que sou eu, fico de bem com a consciência, com a sensação talvez incongruente de que o mundo afinal teria salvação se as pessoas lessem mais (romantismo meu), mas é muito provável que este palpite já tenha sido emitido por outros em gerações passadas, sentados em bancos de jardim pingando o tempo em demasia de se gastar, todos os dias a inventarem maneiras de darem cabo dele, e quando exultam, irrequietos, que deram conta, foi ele que deu cabo deles, envelheceu-os inexoravelmente, com muitas rugas e tudo a que tiveram direito, já que a velhice, aos que chegam lá, não se poupa a mimos.

Morreram todos e mesmo depois desse acontecimento terrível para as suas famílias, continuam a existir jardins com curiosos enfadonhos, como eu, e pessoas poucas que leem procurando sol, ou encontrando sombras. A maioria dos que estão e passam estão longe de dar conta deste tema, são seres completamente normais e saudáveis que não têm questões a colocar sobre quem lê ou não.

Amanhã vou ver se elas persistem em ler no jardim! E nem vou comentar a sua atitude. Só eu reparo nessas coisas, é normal, sou estranho de pequeno.

E tudo isto parece-me bastante subversivo.

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