Teria os meus seis, sete anos de idade.
Miudinho no entendimento da poeira das coisas complexas (talvez ainda permaneça
nessa casa de partida), quando me fascinei por uma montra de uma loja, expondo
livros, objectos que via pela primeira vez numa quantidade que não compreendi.
Um quadro vivo, com dimensões e texturas, e muitas cores, umas intensas, outras
esbatidas.
Apaixonei-me, sé é permitido a um rapaz
dessa idade apaixonar-se (deve ser, porque a paixão não é amiga da razão e um
catraio de seis anos tem pouca razão).
Pelos títulos dos livros. Nessa altura
ainda não sabia que havia livros – alguns entre os melhores que já se
escreveram – em que está tudo dito nos títulos que lhes dão, não merece o
esforço desperdiçar momentos, com a dolorosa agonia das frases que se amontoam
nas páginas, tantas vezes excessivas. Tempo perdido. No entanto e dando a
sensação de que se procuram sempre compensações que restabeleçam a harmonia das
coisas, há muitos livros que não deviam ter título, porque nenhum é suficiente
para revelar o tesouro que encerram.
Essa montra, nesse dia que já não sei se foi
um inverno o uma primavera, primavera seria, porque mesmo que não tenha sido é
como eu gosto de o recordar, foi o dia em que tomei uma decisão difícil. Um dia
em que as coisas eram antigas, quando os dias não terminavam, e eu era eterno,
porque miúdo, miudinho. Dava a mão ao meu pai, que me parecia um gigante, todos
me pareciam assim, e ele (também só o soube mais tarde) não lia livros, mas
gostava de os comprar. Talvez porque o fascinava aquele ajuntamento de cor e
palavras, pequenas, maiores, em maiúsculas, em minúsculas, os títulos dos
livros que ficavam tão bem, alinhados e impressos nas lombadas, numa fila
perfeita a encher as prateleiras da sala, onde o meu pai fumava muito cachimbo,
bebia uma aguardente velha e das boas, e divagava os olhos curiosos nesse
arco-íris permanente que tínhamos em casa, talvez pensando na responsabilidade
tantas vezes insustentável de ser adulto.
Por isso fascinei-me por essa montra,
porque tinha ainda mais, muitos mais livros do que nós tínhamos, e a mim, cachopo
de seis anos, pareceu-me que aquele lugar da montra, era a verdadeira Babel dos
livros.
Não sei se entrámos nesse dia ou outro, mas
sei que quando entrei nessa livraria de bairro na periferia da cidade dormente,
tínhamos de descer a umas catacumbas, onde numa sala que sempre me pareceu
enorme e afinal não o é, prateleiras e prateleiras cheias de livros, talvez
mesmo todos os livros do mundo, estavam à disposição das nossas mãos e daquele
ritual único e sexual de os acariciar com uma intencionalidade física, afagá-los
convincentemente, cheirá-los e absorver esse
cheiro íntimo, abrir e folhear as páginas que nesse momento se desabrocham ao
nosso toque de pequenos Midas, e por fim ler e deixar-se levar, ou não,
levando-os connosco para casa, a aumentarem a nossa família, acrescentando
filhos aos que já temos.
Nessa livraria, utopia de um homem
humanista, Armando, sereno e bom conversador,construiu-se um projecto de
cultura e liberdade, pequeno oásis escondido nas profundezas de uma cave, num
deserto imenso e inclemente, de opressão e intolerância ao pensamento livre.
Decidi nesse dia oferecer-me de corpo e
alma aos livros, e não podia ter feito outra opção. Hoje, sento-me na sala, já
não fumo cachimbo e raramente bebo uma boa aguardente velha, mas devaneio os
meus olhos nas cores piscantes dos meus livros, uma vida de livros, alinhados
solenemente diante mim.
O
meu tesouro pessoal, aberto aos meus filhos e à sua curiosidade e a dos netos
que um dia terei, beijando-os ainda de corpo presente, ou beijando-os de
Olimpos etéreos, em matérias espirituais que lhes dará um ligeiro arrepio e
prazer, quando os cubro com esses beijos viajados vindos de outras dimensões e
eles pedem aos pais que lhes contem as histórias que guardam os livros da
biblioteca familiar. São os livros que li e amei, que sublinhei a lápis
suavemente, e construi quimeras de vir a ser, num dia claro e límpido de
primavera, construtor de livros belos.
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