Costurava bilros com as palavras. O que para outros seria complicado, ele fazia-o com naturalidade. Não era um homem com estudos, se com isso se considerar a obtenção com maior ou menor esforço de diplomas e anos de resiliência, a aguentar os currículos bafientos e desinteressantes e os professores desmotivados, que não têm outras opções senão irem até velhos e depois, chegados aí, morrerem ou ficarem rapidamente apatetados e infantis. Moldou-se a si próprio. Aprendeu a compreender as palavras e depois estudou-as sozinho. No falar, foi uma pessoa contida, por natureza própria, e por essa característica sua, não necessitava de muitas palavras, as que usava no dia a dia, usava-as com segurança de quem sabia o que estava a dizer. A sua criatividade deixava-a fluir na escrita, a rédea larga. Não escrevia com nenhum propósito literário, e nunca teve sequer intenções de tentar uma novela. Era trabalho a mais e quando chegasse ao final, se chegasse ao final, já estaria cansado dos personagens que tinha inventado. Nisso pode-se dizer que era uma pessoa com alguma inquietação. O que lhe dava verdadeiro prazer, quase religioso, era ler todas as manhãs, de fio a pavio e sempre da última para a primeira página o Diário de Notícias. Lia-o e sublinhava, fazia marcas suas, como um código seu. Depois de trabalhar e antes de voltar a casa, tomava um último café no café do costume, atendido pelo empregado do costume e o mesmo ambiente e frequentadores de sempre, e voltava a abrir o jornal da manhã. Guiava-se pelos sinais que tinha deixado e escrevia numa caligrafia cuidada e bela, a caneta de aparo, nas margens e nos rodapés das colunas. Escrevia a sua apreciação sobre as notícias e a sua opinião sobre os assuntos, mas também deixava recados e conselhos aos jornalistas que as tinham escrito, que ele não conhecia nem sabia quem eram, para além dos que pelos anos de serviço ou qualidade reconhecida, assinavam o nome nas peças que publicavam.
Concluído este trabalho - cá está - uma
filigrana em bilros de palavras, dobrava as folhas com as suas anotações, punha-as
num envelope, já com selo, endereçava ao chefe de redação do matutino, e no
remente escrevia “Um cidadão Atento”. À saída do café depositava a carta numa
caixa de correio, vermelha, das que já não existem, porque perderam a função. Durante
mais de trinta anos foi fiel a este ritual. Nunca recebeu resposta na volta do
correio, porque nunca pôs morada. Essa foi a forma e o estilo que ele encontrou
de exercer a cidadania, e afinal, de ser escritor. Não deixou nada por dizer, e
assim, quando partiu para a viagem final, viajou leve como uma pena.
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