Estende-se a palavra na folha de papel, e salpica-nos
em novidades. Todos os dias sinto esse espanto, emoção primordial da união das
palavras, que sem se saber como nem porquê, redesenham significados que nem
sequer desconfiava, harmonias criativas, num concentrado de emoção. É isso a
arte, ao qual sou alheio como criador. O meu trabalho, menor, é estendê-las a
seu gosto na folha em branco, e nesse esforço, que por vezes não é pouco, elas encontram
os seus enamoramentos, os seus casamentos, construindo de um caos aparente, um edifício
poético, revestindo de lantejoulas e brocados a sua nudez inicial. Quando isto
acontece, recosto-me no cadeirão de molas chiantes, envolvendo-me como o faz uma
planta carnívora quando encerra sobre a presa as suas pétalas, eu no tal
cadeirão, tão confortável como usado, e fico-me a admirá-las, realizado e cheio.
Depois, fecho o caderno e não incomodo a sua intimidade – serei sempre um
estrangeiro no meio delas - para que no recato do seu sossego, prossigam nos
seus jogos de conjugações, e aí, desconheço as suas conversas íntimas, porque
já não estou presente.
Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó. Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar. Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não. Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava
Comentários
Enviar um comentário