Dávamos as mãos e lá íamos, pela rua Morais
Soares abaixo. Eu pequenote, o mundo ainda a parecer-me maior do que é, imenso,
eu minúsculo, percebi logo por essa desproporcionalidade como iriam ser as
coisas no futuro. Era o passeio do ano. Da porta de casa ao início dessa rua
cheia de movimento e lojas, atravessávamos o muro, alto, do cemitério do Alto
de São João, o silêncio dos mortos, semi-obscuridade, eu cheio de medo deles,
não sabendo que estando mortos não me podiam fazer mal, só os vivos. A Morais
Soares, no sentido de quem ia, o nosso caso, é sempre a descer, e aos meus
olhos poderia muito bem ser a Hollywood Boulevard, que eu ainda não
conhecia, mas é a melhor comparação que me vem à ideia. Várias faixas de
circulação automóvel, para cima e para baixo, as lojas iluminadas de tudo:
camisarias, retrosarias, talhos, mercearias, casas de pasto, artigos
indiferenciados, uma garagem automóvel, um mundo. Julgava que essa rua nunca
mais acabava e que era a maior rua da cidade. Quando chegávamos à Praça do
Chile, uma praça que nunca foi uma praça como deve ser, mais um redondel, apanhávamos
o eléctrico e era outra festa. O ambiente em si. Pessoas a entrar e a sair, o revisor,
fardado, com um chapéu lindo – sempre adorei bonés – e um instrumento
magnífico, o picador de bilhetes. Quanto não daria eu, dava o meu mealheiro do
Montepio, para ter um igual, e poder passar os dias inteiros a fazer de revisor
da Carris, picando e furando tudo quanto fosse folha de papel, jornal, revista,
o que estivesse à mão. O eléctrico deixava-nos na Praça da Figueira, essa sim,
imponente, e se eu julgava ter visto tudo estava muito enganado: a Baixa e as
suas ruas, o Chiado e os grandes armazéns, isso sim, era o mundo, mais, era o
universo. Decorações de Natal nas ruas e nas lojas, tanta luz a derramar sonhos
e fantasias coloridas, decorações das montras com flocos brancos a imitar neve,
e eu, era tão crédulo ainda, a acreditar que era mesmo neve. O auge desse
passeio histórico e único, culminava nos Grandes Armazéns do Chiado, onde meia
Lisboa e meia província, faziam as suas compras de tudo, ou pelo menos visitava
com pormenor, para depois contar à outra metade que não ia, como é o mundo
maravilhoso dos bens de consumo, para quem pode. Havia um senhor de longas
barbas brancas, aparentemente suas, que vestia o personagem Pai Natal. Estava sentado
na entrada dos armazéns e as crianças abeiravam-se dele, ele sentava-as ao colo
e tiravam uma fotografia. E era o pináculo, o zénite, o desfecho apoteótico de
um fim de dia, o do passeio para ver as decorações de Natal. Todos os anos em
que fizemos essa peregrinação, a minha avó insistia em pôr-me no colo do
senhor, e eu, miúdo cheio de dúvidas, interrogações e pequenos medos, sempre me assustei e recusei a fotografia,
apesar da insistência do senhor Natal, na sua voz rouca, que não o sabendo ele,
mas sabendo eu, ainda me dava mais medo.
Nunca mais gostei dos palhaços e ainda
hoje, quando os vejo na televisão ou em actos públicos, desvio o olhar e a
atenção, dão-me vergonha alheia, mexem comigo.
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