E seria
um local belo se ela não tivesse de se levantar todos os dias da vida, as três
e meia da manhã e passar o rio para a outra margem, quase um mar, e quatro
transportes e correr sempre, para os apanhar, para apanhar com uma ponta dos
dedos, sempre a escapar-lhe, uma existência miserável, não fosse a vontade de
fazer crescer os netos-filhos do sufoco de uma existência assim, sem dignidade
de cara lavada. Todos os dias, entre as seis e as nove para pôr a brilhar o
chão da grande superfície, que lhe espreme as margens da subsistência, como faz
ao produtor de batata, também desgraçado, vida dura a sua, para ganhar tostões.
Podia ser
um sítio belo de viver, se as crianças tivessem tectos onde não chovesse e boas
janelas que impedissem as humidades e os frios a tomarem conta do espaço exíguo
onde dormem tantos com tão pouco.
E se
houvesse água e electricidade e esgotos e as ruas não fossem pistas de lama e
as crianças pudessem levar os sonhos até serem grandes, e tornar alguns
verdadeiros e não terem de carregar o peso insuportável da impossibilidade de
serem bem sucedidos, muitos poucos, talvez nenhum, não há igualdade.
Podia e
é um sítio belo, um bairro, de casas frágeis e gente resistente, debruçado
sobre uma praia na margem boa, a olhar numa melancolia doce, mais alegre do que
triste, de cores quentes e muitas, africana, para o rio e o espelhar dos raios
do sol intenso que reflectem nas casas do lado de lá.
O bairro
do Torrão da Trafaria, seria o mais bonito, se a Maria, pudesse um dia dormir
sossegada, e sonhar um sonho até ao fim e levantar-se reconstruída e forte para
asfixiar de beijos os netos-filhos que ela vê crescer.
Mas os
senhores não querem e não deixam. O tempo passa nesta paz medieval e ninguém
grita.
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