É uma só pasta, das grandes, a lombada. Suporta muitas folhas, centenas talvez, também separadores. Agora são precisamente nove horas e quarenta minutos, de um dia de semana. Às nove horas e dez minutos, arredondando, um ligeiríssimo atraso que não se dá conta, ela entra no edifício e cumprimenta a menina Albertina. Na sua carreira fidelíssima ao Estado, a menina Albertina conheceu dois postos de trabalho: Porteira e Assistente Operacional de Recepção. Veio trabalhar para o Instituto, uma gaiata, com tranças e laçarotes e tudo. O seu pai fazia uns favores ao Senhor Doutor. Informações e isso. Pediu-lhe emprego para a filha e este aceitou-a. Uma mais no meio de tantas afilhadas que tinha. Praticar o Bem, o que ele fazia.
Albertina perdeu as
tranças com laçarotes, endureceu de feições e não casou. Tendo a escassa
família vindo a desaparecer por causa naturais e pela lei da vida e das
precedências, ficou sozinha. O Instituto é a sua família.
Falam as duas sobre coisas
do quotidiano, simples, leves, episódios nos transportes públicos, uma ou outra
novidade de última hora.
Cinco minutos depois da
sua conversa, as nove e mais ou menos quinze minutos, entra no seu gabinete,
que partilha com a Joaquina Maria e com a Maria Benedita, não se dão umas com
as outras, por aí além. Despe o casaco, coloca-o no bengaleiro tendo cuidados e
rigores com as simetrias deste. Dirige-se à copa, tira cuidadosamente o recipiente
de plástico da protecção que comprou o ano passado numa superfície comercial,
tem cores e bolas. Coloca o recipiente no frigorífico. Tem o seu nome escrito
num autocolante.
Toma um café que é
gratuito. Pode tomar dois por dia, a partir daí paga.
Volta ao gabinete, senta-se,
ajeita a almofada e o degrau no chão onde pousa os pés, tem problemas de
coluna.
As nove horas e quarenta e
tal minutos, senão alguns mais, começa a trabalhar.
Abre a pasta, a sua pasta,
e começa por confirmar se todas as folhas estão harmoniosamente alinhadas entre
si, estas e os separadores. Foi a última e única pessoa a mexer na pasta,
ontem, quando saiu, mas ainda assim confirma se está tudo bem e pode iniciar o
seu dia de trabalho, mais um, menos um para a reforma.
As folhas e os separadores
estarem alinhadas significa que as furou bem, o que nem sempre acontece, é um
erro comum de principiantes ou empregados pouco diligentes. Ela não, é
exemplar, não falha a furar as folhas. Apesar de parecer estar tudo bem, ela,
para se assegurar, tira as folhas e os separadores, uma a uma, na ordem inversa
e volta, meticulosamente, a colocá-las na pasta. Leva o seu tempo, e quando
termina esta tarefa são praticamente onze e meia da manhã. Há dias em que são
mais tarde quando a pasta tem mais folhas e acrescentados separadores.
Trabalhou bem. Merece uma
pausa. Fecha a pasta, coloca-a na respectiva prateleira e dirige-se à casa de
banho, onde não se sabe o que vai fazer mas pelo tempo que demora, mais ou
menos quinze minutos, consideremos como uma pausa para alívio fisiológico. De caminho,
ou seja, de volta, diverge ligeiramente e passa pelo corredor que dá para o
balcão de atendimento ao público, por nenhuma razão em especial, é um
automatismo seu. A confusão é a habitual.
Depois de se voltar a
sentar e de novo com a pasta de lombada larga em cima da sua mesa de trabalho,
certifica-se que as folhas estão todas, uma a uma, no sítio que lhes deve
corresponder, a bem da sua consciência, de empregada exemplar.
Cada vez que introduz uma
folha nova, confere as que estão para trás, as que estão para a frente, não vá desequilibrar
o alinhamento. Faz esta tarefa mais do que uma vez por dia, pelo menos uma de
manhã e outra à tarde.
São agora treze horas em
ponto, e ela, pontual que é, emprateleira a sua pasta, alinha na perpendicular à
linha da secretária que marca a fronteira do seu corpo com o espaço de
trabalho, o lápis, a caneta, a borracha e o corrector. Levanta-se com cuidado,
não vá a escoliose e a hérnia dar-lhe trabalhos, e vai aquecer o almoço.
Não se sabe o que ela
come. No final, de comer, depois de lavados os utensílios, estabelece uma
pequena conversa de circunstância com a Joaquina Maria e a Maria Benedita. Trabalham
juntas quase há quarenta anos e não têm mais intimidade que a dos momentos
efémeros das suas conversas na copa do Instituto. Não conhecem, a não ser pelos
nomes e pelas fotografias, as famílias umas das outras. No entanto, dão
opiniões.
O serviço recomeça às duas
horas e trinta minutos, mas como o Senhor Doutor nunca chega depois de almoço,
antes das três e vai para muitos, ela não fica em tensão. No entanto, pelo sim
pelo não, volta a conferir a sua pasta. Sendo necessário e quase sempre o é,
tira todas as páginas e separadores na ordem inversa, já o sabemos.
Com tudo isto, o dia acaba
por findar. Ela assegura-se que a sua pasta não será violada na sua ausência e
deixa pistas, para amanhã, quando chegar, comprovar se alguém lhe mexeu.
Há muitas folhas, tantas,
em branco, na sua pasta. Isso não é da sua competência. É o sistema. Arquiva-as
como as outras, têm todas a mesma importância, vazias de palavras ou cheias
delas.
Ela,
chama-se Anunciada, e não sabe o que vai fazer amanhã, no dia em que se
reformar. Quando chegar a casa vai matutar no trabalho, a pasta, nem sempre
dorme bem por causa disso.
Se a
deixassem trazer a pasta, isso sim, podia descansar.
Comentários
Enviar um comentário