Era alegre no seu maneirismo
de o ser porque na realidade não há outra forma de entender e descrever a sua
alegria exuberante. No tudo e no nada, nas pequenas e nas grandes coisas, via
motivos de alegria, de tal forma que quem não o conhecesse poderia encontrar um
traço, uma ligeira brisa de loucura, muito ténue, que se lhe perdoava, porque
como todos os loucos simpáticos, era encantador.
Sendo a alegria uma
banalidade, vê-se por aí muita gente alegre, assim como triste, e também
melancólica, um meio termo das duas, não é comum uma pessoa passar por todos os
desafios que a vida apronta com um sorriso esclarecedor nos olhos e uma
ligeireza nos passos que se dá, sem que a fraqueza da tristeza o acabrunhe uma
vez por outra.
Era essa a sensação que
António imprimia nas pessoas, conhecidas ou desconhecidas. De tal forma que
alguns, os mais desmagnetizados, a quererem escapar das forças gravitacionais
que nos prende à terra, por serem assim, consideravam que ele regulava de
menos, ou seja, desregulava, ou seja ainda, era meio louco.
Assim era visto António pelos
seus conterrâneos, um punhado deles, já que os que havia de mais jeito e préstimo
abalaram quando puderam na direcção do mar, não para se fazerem marinheiros, o
que seria de esperar, mas para serem profissionais da restauração, um presente
ainda que sazonal com perspectivas de futuro, muito mais promissor do que
exercer-se de pastor a tempo inteiro, uma vida solitária, dada a monólogos de
sanidade duvidosa, ou desconversas, com as ovelhas ou as cabras.
Conversas que levam a nada e
são um sinal de afastamento das coisas do mundo.
No entanto António era feliz,
e por isso alegre, e foi por vontade sua que se deixou ficar na terra,
absorvedor empedernido de uma certa beleza das serranias despidas e secas,
agrestes, pálidas das cores da vida e da exuberância, pela escassez de água que
vai toda dar ao mar, linha cinzento escura que ele vê sentado no cimo de um
cabeço quando fuma um cigarro, forma sua de meditar.
Era ele e o Quim desdentado,
que quando falava ciciava, como se assobiasse falando, fenómeno atribuído à
anatomia da sua boca. Tinha a sua piada esse dizer-assobio, mas às vezes não se
entendia nada, não que fosse de importância: num sítio despido de almas no
pleno usufruto da existência terrena, antes de irem penar sabe-se lá para onde
vão, a palavra vale o que vale, pouco, passa-se sem ela, não é necessária. Se
as pedras falassem, era outra história, mas nem elas nem as paredes.
Conta igualmente para o census o José dos CTT, que não sendo da
terra – é de Olhão – é o visitante mais
assíduo dos dois residentes fixos e empedernidos. Transportador das notícias do
mundo, não que tenham algum interesse especial, mas sempre são histórias novas
que eles ouvem da boca do carteiro, entre o bota-acima e o bota-abaixo dos
sininhos de medronho, cálices com essa forma, o hidromel destes deuses na
terra. E só não o são de pleno direito, com asas e tudo, porque são mortais, e
como tal humanos até ao último dos seus dias. Depois, logo se vê, a pontuação
que Deus lhes der, se vão definitivamente para anjos ou se ficam a pená-las nos
escaldantes dos infernos.
Já sabemos portanto que o
António é pastor, o Quim é desdentado (estando em regime de desemprego
permanente desde que nasceu, não há outras características relevantes para o
apresentar, restando essa situação igualmente permanente e definitiva da
ausência por queda precoce dos dentes com que veio ao mundo). Complete-se com o
José carteiro, como já se disse.
Se as galinhas fossem gente
(algumas gostavam de o ser, outras acham que são arrelias a mais) diríamos que
o António tem duas, poedeiras de ovos dia sim e dia não. A preta atende pelo
nome de escurinha e a branca, é a imaculada. Existe igualmente um cão, espertíssimo, mesmo no limiar
de pronunciar discursos com palavras encadeadas em frases a fazerem sentido.
Raio do canídeo, fino como um gabiru. Dá pelo nome de manchas, característica inerente à sua pelagem rústica.
Este cão é o alter-ego do
António, e vice-versa. Imitam-se um ao outro em tudo, de tal forma que por
vezes ficam ciumentos, o António por não ser o manchas e este por não ser o
António, e se fosse possível por artes que até podiam ser mágicas, eles
operavam um transvestimento dos dois,
cada um no outro.
Aqui chegados, apresentados os
protagonistas – repassados mais para a frente - já com o folego escasso de
tanto palavreado, faz-se uma pausa para retemperar ideias. Descerra-se o pano no
palco do dia, com o espectáculo da exuberância de cores no céu das terras do
sul e aqueles, poucos, que têm o hábito de pousar o olhar no céu renovam a
esperança.
Amanhã fingidos de espiões a
que não nos vejam e se intimidem, chega-se às conversas do António e do manchas, testemunhas invisíveis e assiste-se
a uma confissão que a seu tempo vai ser decisiva para o desfecho desta história
muito pouco provável, mas ainda assim real, porque vai acontecer tal e qual
dita a premonição, uma espécie de determinismo que arregimenta a vida do António
e de todos nós.
Não há histórias coerentes ou incoerentes, ou
antes há, e todas são possíveis. Na vida, quando menos se espera, indo ela
encarreirada, de repente desatina e segue ínvios caminhos estranhos, sem
sentido nem compreensão. Parecia que ia tão bem e acaba por ir tão mal. Ficam
as verosimilhanças de boca aberta e o excêntrico toma conta da cena tecendo
finais majestosos, ou trágicos, ou anémicos.
António que não é de
filosofias, a não ser nos dias em que perde as contas com os sininhos, postas
as ovelhas no recato da loja, vai à janta com o manchas. Comem juntos, vivem numa intimidade, se bem que à noite,
cansados das andanças, monte acima, monte abaixo, cada um recolhe à sua mansão
interior e reconhecem que passaram mais um belo dia juntos. Amanhã, se Deus
quiser, continuará a ver-se o azul despejado do céu.
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