Num pequeno universo este, de personagens humildes e a contarem cada um meio voto de um voto inteiro de cidadão intitulado, não que estes não o sejam, mas andam esquecidos num sítio anónimo, num tempo que já não existe, sem opinião formada que influencie os eixos da terra, o Manchas, grande cão este a aproximar-se mesmo dos limites mínimos para ser humano, é o mais humilde de todos: Primeiro, por natureza própria, depois por ser cão e não ter voto na matéria - não fala a língua do António está excluído de igualdades- e em não falando não é gente e por consequência e inerência, vale um quarto de voto, o que é o mesmo de valer um por inteiro, nada. Como se falar fosse critério. A ser, nem o António, nem o desdentado e a custo o dos CTT, entrariam na categoria de homens, mal sabem eles o que dizem e muitas vezes como o dizem: algraviadas, é o que é!
Consciente disso, o Manchas, não emite opiniões, conformando-se
com as decisões do dono, soberano e senhor de poucas posses que incluem pelo
menos um cão, mais objecto que ser vivente, apesar do apreço que o António lhe
tem.
Sendo um canzarrão, grande,
ainda maior que uma ovelha antes da tosquia, o Manchas não tem mesmo assim o corpanzil do cão do Quim, esse sim
quase do tamanho de um burro, uma aberração. Valendo-se disso, sabendo que a
população canina da zona são podengos lambidos
cuja única protuberância de jeito e tamanho são as orelhas disfuncionais, a não
servirem para nada - não havendo conversas para ouvir num lugar sem gentes de
que servem orelhas pontiagudas?- o Medronho,
é o algoz das redondezas. Sim!, carrasco.
Garbo, vaidoso, investido de
finório, mau como o pão de marmeleiro, o das cachaporras; um terror para o gado
e galináceos a jeito; um pesadelo para os outros cães; mas um menino de coro,
neste caso em versão de canídeo, para o dono. Dissimulado. O desdentado, alma
simples, não sabe da missa a metade, das tropelias e estragos que o cão
provoca. Vive na ignorância e menos mal para ele, leva a existência com vagar e
aproveitamento de todos os instantes já que não tem nada mais com que se
entreter senão com a vida. E o cão é o seu ai Jesus, como um filho. Comem
juntos, veem o telejornal juntos e só não bebem juntos, porque o Medronho, não sabemos se foi pelo nome,
se por outra razão, fervilha em nervos e os vinhos ainda pioram a situação. Só
bebe água.
O Manchas e o Medronho
enfrentaram-se uma vez e ficaram a saber o que cada um valia. O Manchas percebeu que o Medronho era um bazófias, tinha uma
sexualidade por resolver, o que não interessa para o assunto mas fica dito.
Naquele cenário todo de se
armar em toureiro – o encontro deu-se num lameiro recôndito - o que acaba por
se destacar nele era a jaqueta de florzinhas e aquelas meias cor-de-rosa, atadas
em lacinhos com fitas de seda, que os toureiros usam, só porque sim. Tratando-se
esta descrição ilustrativa de uma imagem, para aproximar a ideia do que realmente
aconteceu e dos maneirismos do Medronho, quando
pela primeira vez lhe fizeram frente: era um cordeirinho pascal.
É claro que a volumetria de um
corpo conta na hora de incutir medo, principalmente se o visado for curto de
perímetros físicos, mas o Manchas, cão
competentíssimo e que merece toda a sorte do mundo, conseguiu logo à primeira
pontuar uma dentada certeira nas partes penduradas do inimigo, neutralizando a
sua acção, desencadeando a reacção efeminada do Medronho, o que atrás se descreveu.
Terminada a contenda, que foi
curta, cada um foi à sua vida e desde aí para cá o Medronho tem vindo a decair na sua soberba e poderíamos dizer que
começou a padecer de um certo spleen,
ou melancolia, que não desmerece o anglicismo. Até os pequenos podengos lhe
arreganham a dentadura e ele, rabo entre as patas, vai-se a lamber ao dono, a
pedir protecção.
O desdentado como é pouco de
raciocínio, não percebe as alterações no cão e achando que ele anda fraco e daí
incompetente na sua missão de ser cão de guarda, optou após ponderação por
introduzir-lhe uma dieta de sopas de cavalo cansado. A fórmula vinho, mais
açucar, mais ovo mexido, mais pão de véspera, se fortalece e restabelece os
tísicos que vão a ares no Caramulo, também fará bem a cães. Mal não faz: espevita.
O Medronho está a adorar o novo regime e anda um cão novo. Vê em
duplicado, mas se isso é um efeito secundário do medicamento prescrito pelo
dono, vale a pena.
Com isto deixou cair a alcunha
de algoz, coisa horrível, nome abjecto, mal-sonante, que nem devia existir no
dicionário, e pouco a pouco começou a ganhar a estima dos podengos e mesmo do Manchas, que lhe pediu desculpa pelo arrepanhanço dentário nos ditos, e não
se falou mais nisso.
O Medronho aceitou, no fundo é um ser de Luz, só que ainda não se
tinha revelado.
O que no fundo interessa é que
na serra todos vivem em harmonia, conhecem as suas obrigações, cumprem-nas e
nos finais de dia quando o calor é convidado a recolher empurrado pelas brisas
frescas que vêm do mar, os escassos habitantes sentam-se nos beirais das suas
casas caiadas e desnovelam recordações, de ontem, dos passados seus e dos
outros que foram próximos, episódios da memória e da nostalgia. Depois, vão-se
deitar. Amanhã é como se fosse o primeiro dia da criação e é sempre assim,
senão deixa-se cair a esperança e é uma chatice.
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