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NOVELA RÚSTICA - II

 




Num pequeno universo este, de personagens humildes e a contarem cada um meio voto de um voto inteiro de cidadão intitulado, não que estes não o sejam, mas andam esquecidos num sítio anónimo, num tempo que já não existe, sem opinião formada que influencie os eixos da terra, o Manchas, grande cão este a aproximar-se mesmo dos limites mínimos para ser humano, é o mais humilde de todos: Primeiro, por natureza própria, depois por ser cão e não ter voto na matéria - não fala a língua do António está excluído de igualdades- e em não falando não é gente e por consequência e inerência, vale um quarto de voto, o que é o mesmo de valer um por inteiro, nada. Como se falar fosse critério. A ser, nem o António, nem o desdentado e a custo o dos CTT, entrariam na categoria de homens, mal sabem eles o que dizem e muitas vezes como o dizem: algraviadas, é o que é!

Consciente disso, o Manchas, não emite opiniões, conformando-se com as decisões do dono, soberano e senhor de poucas posses que incluem pelo menos um cão, mais objecto que ser vivente, apesar do apreço que o António lhe tem.

Sendo um canzarrão, grande, ainda maior que uma ovelha antes da tosquia, o Manchas não tem mesmo assim o corpanzil do cão do Quim, esse sim quase do tamanho de um burro, uma aberração. Valendo-se disso, sabendo que a população canina da zona são podengos lambidos cuja única protuberância de jeito e tamanho são as orelhas disfuncionais, a não servirem para nada - não havendo conversas para ouvir num lugar sem gentes de que servem orelhas pontiagudas?- o Medronho, é o algoz das redondezas. Sim!, carrasco.

Garbo, vaidoso, investido de finório, mau como o pão de marmeleiro, o das cachaporras; um terror para o gado e galináceos a jeito; um pesadelo para os outros cães; mas um menino de coro, neste caso em versão de canídeo, para o dono. Dissimulado. O desdentado, alma simples, não sabe da missa a metade, das tropelias e estragos que o cão provoca. Vive na ignorância e menos mal para ele, leva a existência com vagar e aproveitamento de todos os instantes já que não tem nada mais com que se entreter senão com a vida. E o cão é o seu ai Jesus, como um filho. Comem juntos, veem o telejornal juntos e só não bebem juntos, porque o Medronho, não sabemos se foi pelo nome, se por outra razão, fervilha em nervos e os vinhos ainda pioram a situação. Só bebe água.

O Manchas e o Medronho enfrentaram-se uma vez e ficaram a saber o que cada um valia. O Manchas percebeu que o Medronho era um bazófias, tinha uma sexualidade por resolver, o que não interessa para o assunto mas fica dito.

Naquele cenário todo de se armar em toureiro – o encontro deu-se num lameiro recôndito - o que acaba por se destacar nele era a jaqueta de florzinhas e aquelas meias cor-de-rosa, atadas em lacinhos com fitas de seda, que os toureiros usam, só porque sim. Tratando-se esta descrição ilustrativa de uma imagem, para aproximar a ideia do que realmente aconteceu e dos maneirismos do Medronho, quando pela primeira vez lhe fizeram frente: era um cordeirinho pascal.

É claro que a volumetria de um corpo conta na hora de incutir medo, principalmente se o visado for curto de perímetros físicos, mas o Manchas, cão competentíssimo e que merece toda a sorte do mundo, conseguiu logo à primeira pontuar uma dentada certeira nas partes penduradas do inimigo, neutralizando a sua acção, desencadeando a reacção efeminada do Medronho, o que atrás se descreveu.

Terminada a contenda, que foi curta, cada um foi à sua vida e desde aí para cá o Medronho tem vindo a decair na sua soberba e poderíamos dizer que começou a padecer de um certo spleen, ou melancolia, que não desmerece o anglicismo. Até os pequenos podengos lhe arreganham a dentadura e ele, rabo entre as patas, vai-se a lamber ao dono, a pedir protecção.

O desdentado como é pouco de raciocínio, não percebe as alterações no cão e achando que ele anda fraco e daí incompetente na sua missão de ser cão de guarda, optou após ponderação por introduzir-lhe uma dieta de sopas de cavalo cansado. A fórmula vinho, mais açucar, mais ovo mexido, mais pão de véspera, se fortalece e restabelece os tísicos que vão a ares no Caramulo, também fará bem a cães. Mal não faz: espevita.

O Medronho está a adorar o novo regime e anda um cão novo. Vê em duplicado, mas se isso é um efeito secundário do medicamento prescrito pelo dono, vale a pena.

Com isto deixou cair a alcunha de algoz, coisa horrível, nome abjecto, mal-sonante, que nem devia existir no dicionário, e pouco a pouco começou a ganhar a estima dos podengos e mesmo do Manchas, que lhe pediu desculpa pelo arrepanhanço dentário nos ditos, e não se falou mais nisso.

O Medronho aceitou, no fundo é um ser de Luz, só que ainda não se tinha revelado.

O que no fundo interessa é que na serra todos vivem em harmonia, conhecem as suas obrigações, cumprem-nas e nos finais de dia quando o calor é convidado a recolher empurrado pelas brisas frescas que vêm do mar, os escassos habitantes sentam-se nos beirais das suas casas caiadas e desnovelam recordações, de ontem, dos passados seus e dos outros que foram próximos, episódios da memória e da nostalgia. Depois, vão-se deitar. Amanhã é como se fosse o primeiro dia da criação e é sempre assim, senão deixa-se cair a esperança e é uma chatice.


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