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NOVELA RÚSTICA - III

 





Hoje, é como se fosse o primeiro dia da criação. Homens e alimárias despertam para as suas rotinas recarregados de esperança, a ilusão mais persistente com morada certa na cabeça das pessoas. Todos os dias, nas primeiras horas das manhãs, límpidas ou carregadas de nuvens a agoirar tempestades, os homens despertam convencidos que hoje é que vai ser o dia, vai acontecer o milagre: os que são anónimos vão ser reconhecidos por uma coisa qualquer, sua, e ganham fama e outros respeitos e já podem morrer satisfeitos porque vieram ao mundo com sentido; os que são conhecidos, vão ter ainda mais admiradores, que lhes estendem o tapete vermelho, para que desfilem emproados de gente importante, e também já podem morrer porque foram eles que mudaram o mundo.

Vai pois ser o dia de todos os milagres, neste caso para quem tem um deus. Para os que não, vai ser o dia de todas as sortes.

E o desenrolar de todos os dias é assim: começa-se a acreditar que vai ser diferente e termina igual aos anteriores, sem medalhas, só esquecimentos.

Na serra, apesar de a notícia chegar com atrasos consideráveis e geralmente só chega quando o carteiro as traz de viva voz, também o António e o Quim, se levantam todos os dias da cama, cheios de vontade de viver, animados por estarem vivos, apesar de não lhe verem grande utilidade.

O Quim nada faz, passa todo o dia sentado, encostado à parede do casebre, parece que a meditar, ou simplesmente a ver passar o tempo, sem lhe pôr nenhum entrave, não vá o tempo complicar-lhe as contas e ele ter que fazer alguma coisa que lhe dê trabalho, o que seria uma chatice, posto que é homem de se mexer pouco. Contenta-se com o que tem, praticamente nada. O António tem de pastorear o rebanho, não há volta a dar, faça a vontade que fizer, todos os dias o gado tem de comer, tem de sair à serra e ele e o Manchas têm de cumprir a sua via-sacra, uma penitência sem descansos.

Quando o Quim se sentou, por uma intuição que não se explica mas ele sempre foi assim, deu-lhe para achar que o tempo estava estranho. Se fosse homem de curiosidades, teria carregado com mais perguntas e iria procurar uma resposta, uma explicação, um esclarecimento. Mas não, tanto se lhe dava que o dia estivesse assim ou estivesse assado, é mais um, e nada de novo o vai surpreender, que ele estava convencido que já tinha visto tudo: nada o apanharia. Estava enganado.

O António, de sensibilidade mais fina, talvez porque tivesse regularmente o convívio social que o Quim nunca teve, convívio este que apesar de ser com as cabras e as ovelhas e com o Manchas, não deixa de ser uma sociabilização - à sua maneira, mas é -, teve um pressentimento. Um calafrio. Um desconforto momentâneo.

Raios! O que se passa aqui? Queres ver que estou para resfriar? Em inícios de verão?

O Manchas não percebeu onde ele queria chegar, o costume. O dono fala bastante sozinho, e tem cada conversa, ou melhor desconversa, que ainda bem que ninguém o ouve.

Sendo um homem da natureza, olhou de imediato para o céu e achou que este estava tinto de uma cor que não é comum. Um acastanhado. Deu-lhe mais atenção e percebeu uma espécie de névoa, lá ao longe, a despontar do terceiro monte, uma névoa baixa, lenta, a encobrir o céu e a terra.

Habituados que estão aos ventos do deserto, que vêm do outro lado do mar e trazem consigo areias e o pó das almas dos que o habitam, achou que podia ser isso. Preparou as coisas, o farnel de pão e chouriça e um belo queijo feito por si mesmo, não se esqueceu de encher a bota de vinho, deu ordem de marcha ao Manchas, abriu a porta do curral - se se pode chamar porta a um desconchavo de tábuas mal-amanhadas com pregos e cordas umas nas outras – e puseram-se em marcha de procissão pagã.

Atravessam a rua principal e única da aldeia e no final dela, têm o Quim à espera, para dois ou três dedos de conversa, a conversa da manhã, que a da tarde se cumprirá não haja atraso ou um azar qualquer, quando o António voltar a escapar do lusco-fusco.

- Bom dia Quim.- Cumprimenta-o António, com o boné seboso em jeito de dandy – sabe lá ele o que isso é – na pose malandra, de descair a pala sobre um olho, a fazer estilo.

- Os cabrões dos cães andaram a noite toda no mata-mata. Se já de passo de olho arregalado, a contar-me estórias a ver se pego no sono, esta foi de claridade do princípio ao fim e no pouco que descerrei olho, tive sonhas esquisitas.

- Tens razão Quim, não sei o que se passou, estiveram doidos a noite toda.

- O meu cheguei-lhe bem, mas o gajo nem assim fechou a culatra.

O Quim, quando fala, parece estar sempre na eminência de fazer um discurso que vai alterar os andamentos do Mundo: põe-se sério, incha o peito de velho, olha para o infinito. Sabendo disso e sabendo também que quando ele se põe assim é porque quer pegar na conversa e nunca mais a termina, o António atalha:

- Bem Quim, quando eu voltar limpamos o saco. Vou-me andando, que o tempo está realmente estranho.

- Fica o lambaré para depois, vai a tua vida homem, que eu espero por ti. Logo, botamos abaixo uma canecada.

- Está feito. Até logo.

O Quim ficou a guardar a aldeia, que é a desculpa que ele se dá, para justificar a sua posição estática e a pouca ou nenhuma vontade de se mexer.

António segue atento atrás do rebanho e à medida que vão subindo a serra, o céu macambuzia, cada vez mais acastanhado, o ar mais espesso. O cão, nisto os cães e outros animais têm mais apuramento de sentidos, está nervoso, farta-se de olhar para o dono. Este finge que não percebe, o cão está mesmo nervoso!

Vai a manhã levantada há horas e o António já palmilhou umas boas léguas, montes e vales adentro. A sensação de desconforto não o larga: uma inquietude, um desassossego. As cabras e as ovelhas não obedecem. Está difícil ajuntá-las. Querem voltar para a aldeia, algumas mesmo, desligam das ordens do cão, e põem-se a andar para casa. O António não está a conseguir dar conta do seu recado, ele também indisposto sem saber porquê.

Passado um cabeço, cai-lhe o cenário em cima: uma linha de fogo recorta a linha do horizonte. Está explicado. É o fogo a consumir tudo o que apanha.

Foi um dar a volta e fugir. O dia a ficar cada vez mais escuro, o ar absorvido do oxigénio a dificultar a respiração. Ainda há pouco as labaredas eram uma linha ténue e agora são do tamanho das árvores que envolvem e consomem. António preocupado consigo e com os seus animais - a sua família -, a ver se falta algum, o cão espertíssimo como já se sabe, a cumprir o que lhe é devido.

O caminho para a aldeia foi rápido e à chegada, o Quim sentado no mesmíssimo sítio em que foi deixado, tinha à sua frente baldes de todas as cores e feitios, cheios de água, alinhados, preparados para o que venha aí. Todos os anos era o mesmo calvário, e sempre o fogo se aproximava da aldeia mas felizmente nunca a galgou.

Os que mandam e sabem dizem que estão preparados e desenham gráficos com cores e relatórios e mostram na televisão e afirmam que vêm a caminho aviões e helicópteros, uns atrás dos outros, muitos, e formam-se bombeiros à pazada, os que se queira, e limpam-se florestas, e um trinta por uma linha para mofar do povo, incrédulos, que compram tudo o que dizem os bem-falantes, e estes, mais espertos que os outros, ou a fazerem-se, levam a ralé à certa. E os dos jornais a darem corda à conversa parece que andam comprados. Uma cambada de mentirosos. Arreata, é o que eles têm.

Pensava António nestas coisas políticas, enquanto borrifava o telhado da sua casa com um fio escasso de pressão e água, saído de uma mangueira feniscadinha como uma cobra. Nesta fotografia que nenhum fotógrafo vai tirar vê-se o contorno da solidão.

É assim a vida na serra, cada um a valer por si e são poucos. Abandonados. O resto, o país da beira-mar, é uma ópera bufa: enganam-se de lérias e patranhas uns aos outros e nisto se vão entretendo enquanto olham para o mar e dizem que foram todos marinheiros.

Entretanto o Quim já está cansadíssimo só de focar o olhar na direcção em que vem o fogo, perto da aldeia. Vai ser mais uma noite em branco.

 


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