Hoje, é como se fosse o
primeiro dia da criação. Homens e alimárias despertam para as suas rotinas
recarregados de esperança, a ilusão mais persistente com morada certa na cabeça
das pessoas. Todos os dias, nas primeiras horas das manhãs, límpidas ou
carregadas de nuvens a agoirar tempestades, os homens despertam convencidos que
hoje é que vai ser o dia, vai acontecer o milagre: os que são anónimos vão ser
reconhecidos por uma coisa qualquer, sua, e ganham fama e outros respeitos e já
podem morrer satisfeitos porque vieram ao mundo com sentido; os que são
conhecidos, vão ter ainda mais admiradores, que lhes estendem o tapete
vermelho, para que desfilem emproados de gente importante, e também já podem
morrer porque foram eles que mudaram o mundo.
Vai pois ser o dia de todos os
milagres, neste caso para quem tem um deus. Para os que não, vai ser o dia de
todas as sortes.
E o desenrolar de todos os
dias é assim: começa-se a acreditar que vai ser diferente e termina igual aos
anteriores, sem medalhas, só esquecimentos.
Na serra, apesar de a notícia
chegar com atrasos consideráveis e geralmente só chega quando o carteiro as
traz de viva voz, também o António e o Quim, se levantam todos os dias da cama,
cheios de vontade de viver, animados por estarem vivos, apesar de não lhe verem
grande utilidade.
O Quim nada faz, passa todo o
dia sentado, encostado à parede do casebre, parece que a meditar, ou
simplesmente a ver passar o tempo, sem lhe pôr nenhum entrave, não vá o tempo
complicar-lhe as contas e ele ter que fazer alguma coisa que lhe dê trabalho, o
que seria uma chatice, posto que é homem de se mexer pouco. Contenta-se com o
que tem, praticamente nada. O António tem de pastorear o rebanho, não há volta
a dar, faça a vontade que fizer, todos os dias o gado tem de comer, tem de sair
à serra e ele e o Manchas têm de
cumprir a sua via-sacra, uma penitência sem descansos.
Quando o Quim se sentou, por
uma intuição que não se explica mas ele sempre foi assim, deu-lhe para achar
que o tempo estava estranho. Se fosse homem de curiosidades, teria carregado
com mais perguntas e iria procurar uma resposta, uma explicação, um esclarecimento.
Mas não, tanto se lhe dava que o dia estivesse assim ou estivesse assado, é
mais um, e nada de novo o vai surpreender, que ele estava convencido que já
tinha visto tudo: nada o apanharia. Estava enganado.
O António, de sensibilidade
mais fina, talvez porque tivesse regularmente o convívio social que o Quim
nunca teve, convívio este que apesar de ser com as cabras e as ovelhas e com o Manchas, não deixa de ser uma sociabilização
- à sua maneira, mas é -, teve um pressentimento. Um calafrio. Um desconforto
momentâneo.
Raios!
O que se passa aqui? Queres ver que estou para resfriar? Em inícios de verão?
O Manchas não percebeu onde ele queria chegar, o costume. O dono fala
bastante sozinho, e tem cada conversa, ou melhor desconversa, que ainda bem que
ninguém o ouve.
Sendo um homem da natureza,
olhou de imediato para o céu e achou que este estava tinto de uma cor que não é
comum. Um acastanhado. Deu-lhe mais atenção e percebeu uma espécie de névoa, lá
ao longe, a despontar do terceiro monte, uma névoa baixa, lenta, a encobrir o
céu e a terra.
Habituados que estão aos
ventos do deserto, que vêm do outro lado do mar e trazem consigo areias e o pó
das almas dos que o habitam, achou que podia ser isso. Preparou as coisas, o
farnel de pão e chouriça e um belo queijo feito por si mesmo, não se esqueceu
de encher a bota de vinho, deu ordem de marcha ao Manchas, abriu a porta do curral - se se pode chamar porta a um
desconchavo de tábuas mal-amanhadas com pregos e cordas umas nas outras – e
puseram-se em marcha de procissão pagã.
Atravessam a rua principal e
única da aldeia e no final dela, têm o Quim à espera, para dois ou três dedos
de conversa, a conversa da manhã, que a da tarde se cumprirá não haja atraso ou
um azar qualquer, quando o António voltar a escapar do lusco-fusco.
- Bom dia Quim.- Cumprimenta-o
António, com o boné seboso em jeito de dandy
– sabe lá ele o que isso é – na pose malandra, de descair a pala sobre um olho,
a fazer estilo.
- Os cabrões dos cães andaram
a noite toda no mata-mata. Se já de
passo de olho arregalado, a contar-me estórias a ver se pego no sono, esta foi
de claridade do princípio ao fim e no pouco que descerrei olho, tive sonhas esquisitas.
- Tens razão Quim, não sei o
que se passou, estiveram doidos a noite toda.
- O meu cheguei-lhe bem, mas o
gajo nem assim fechou a culatra.
O Quim, quando fala, parece
estar sempre na eminência de fazer um discurso que vai alterar os andamentos do
Mundo: põe-se sério, incha o peito de velho, olha para o infinito. Sabendo
disso e sabendo também que quando ele se põe assim é porque quer pegar na
conversa e nunca mais a termina, o António atalha:
- Bem Quim, quando eu voltar limpamos o saco. Vou-me andando, que o
tempo está realmente estranho.
- Fica o lambaré para depois, vai a tua vida homem, que eu espero por ti.
Logo, botamos abaixo uma canecada.
- Está feito. Até logo.
O Quim ficou a guardar a
aldeia, que é a desculpa que ele se dá, para justificar a sua posição estática
e a pouca ou nenhuma vontade de se mexer.
António segue atento atrás do
rebanho e à medida que vão subindo a serra, o céu macambuzia, cada vez mais
acastanhado, o ar mais espesso. O cão, nisto os cães e outros animais têm mais
apuramento de sentidos, está nervoso, farta-se de olhar para o dono. Este finge
que não percebe, o cão está mesmo nervoso!
Vai a manhã levantada há horas
e o António já palmilhou umas boas léguas, montes e vales adentro. A sensação
de desconforto não o larga: uma inquietude, um desassossego. As cabras e as
ovelhas não obedecem. Está difícil ajuntá-las. Querem voltar para a aldeia,
algumas mesmo, desligam das ordens do cão, e põem-se a andar para casa. O
António não está a conseguir dar conta do seu recado, ele também indisposto sem
saber porquê.
Passado um cabeço, cai-lhe o
cenário em cima: uma linha de fogo recorta a linha do horizonte. Está
explicado. É o fogo a consumir tudo o que apanha.
Foi um dar a volta e fugir. O
dia a ficar cada vez mais escuro, o ar absorvido do oxigénio a dificultar a
respiração. Ainda há pouco as labaredas eram uma linha ténue e agora são do
tamanho das árvores que envolvem e consomem. António preocupado consigo e com
os seus animais - a sua família -, a ver se falta algum, o cão espertíssimo como
já se sabe, a cumprir o que lhe é devido.
O caminho para a aldeia foi
rápido e à chegada, o Quim sentado no mesmíssimo sítio em que foi deixado, tinha
à sua frente baldes de todas as cores e feitios, cheios de água, alinhados,
preparados para o que venha aí. Todos os anos era o mesmo calvário, e sempre o
fogo se aproximava da aldeia mas felizmente nunca a galgou.
Os que mandam e sabem dizem
que estão preparados e desenham gráficos com cores e relatórios e mostram na
televisão e afirmam que vêm a caminho aviões e helicópteros, uns atrás dos
outros, muitos, e formam-se bombeiros à pazada, os que se queira, e limpam-se
florestas, e um trinta por uma linha para mofar do povo, incrédulos, que compram
tudo o que dizem os bem-falantes, e estes, mais espertos que os outros, ou a
fazerem-se, levam a ralé à certa. E os dos jornais a darem corda à conversa
parece que andam comprados. Uma cambada de mentirosos. Arreata, é o que eles têm.
Pensava António nestas coisas
políticas, enquanto borrifava o telhado da sua casa com um fio escasso de
pressão e água, saído de uma mangueira feniscadinha
como uma cobra. Nesta fotografia que nenhum fotógrafo vai tirar vê-se o
contorno da solidão.
É assim a vida na serra, cada
um a valer por si e são poucos. Abandonados. O resto, o país da beira-mar, é
uma ópera bufa: enganam-se de lérias e patranhas uns aos outros e nisto se vão
entretendo enquanto olham para o mar e dizem que foram todos marinheiros.
Entretanto o Quim já está
cansadíssimo só de focar o olhar na direcção em que vem o fogo, perto da aldeia.
Vai ser mais uma noite em branco.
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