Copenhaga,
Tóquio, Jamaica, Europa, Shangri-la. Enumeração aleatória de lugares e regiões
na geografia do mundo, identificáveis com um dedo apontando o mapa mundi,
ou a fazer uma roleta russa num planisfério. Excepto o último, um paraíso
utópico, só reconhecível em imaginação fértil.
Na geografia de
uma rua cabe todo o planeta. Dá-se-lhe a volta em dez minutos, sem sair dos
fusos.
Isabel
percorre, num vaivém contínuo e incansável, nómada errante, essa pequena
rua que junta todos os lugares. Quase ridícula. Resgata marinheiros em compasso
de espera em terra alheia. Salva-os da monotonia do tempo que está em suspenso,
antes de mais uma partida, sem terem para onde ir, já perderam há muito o
coração.
Oferece-se, não
se faz poupada.
No calor da
refrega apressada, em lençóis de limpeza duvidosa, partilhados com outros
ocupantes minúsculos residentes habituais, por vezes, uma centelha de
calor atinge o outro, entremez na solidão dos afectos, ignição primordial.
Não sacia,
dir-se-ia que reconforta ligeiramente, sem se darem sinal, nenhum dos
intervenientes quer saber disso, de confortos fátuos.
Não faz da
biografia um novelo, uma narrativa com sentido e história: alimenta o corpo de
fugida, para continuar a viver, usa-se de um baton e alguma cor estridente para
os olhos e pouco mais luxo. Uma vida assim consome muitas fichas, mas ela
ainda não se deu conta. É jovem, mais tarde tudo se paga. Vive na imortalidade
como todos os seres jovens, até sentir o arrepio de uma aragem, no dia em
que o corpo deixar de ser uma máquina imbatível e se ressentir dos desleixos.
Afinal não há eternidade.
No universo
muito particular desta rua, repenicam-se as histórias dos homens:
encontros, perdas, conflitos, gritos, silêncios, marinheiros tatuados, chulos,
burgueses disfarçados, mulheres concedidas, fáceis. Beijos mais ou menos
veementes, ou pagos, facadas que doem e magoam. Uma escola em cursos
intensivos, sem diplomas para pendurar na parede. Estão todos convidados a
frequentar, queiram ou não.
Isabel mal entende
as palavras dos outros, palavras de muitas línguas e muitos sons.
Raridades que soam. A quê? Não importa: para o sexo não são precisas
palavras, estão a mais e mesmo que ditas, poucas, mal são escutadas. As palavras estorvam os corpos. Estes têm
entendimentos próprios.
Ela não tem
homem por conta, conta e risco próprios, arriscada aos limites, não presta
contas aos chulos.
Na mesma pensão
- a do Amor, palavra cruel - onde recebe os clientes, habita um quarto esconso
em águas furtadas com uma pequena escotilha, no lugar de uma janela normal e
comum. Neste prédio tudo é desconforme. Vive num barco encalhado no cais, num
mar que não muda de sitio, sempre o mesmo.
O dia não tem
luz nem trevas, não tem sucessão de horas, de frios ou de calores. É sempre
igual, todas as horas que acontecem: uma ladainha constante de bar em bar,
piscar de olhos e de dedos de uma mão que indicam preços e
outras sinaléticas manhosas.
Subir as
escadas, pousar a mala coçada sem sobressalente, só tem uma, contar as notas
e depositá-las nos sapatos, cofre transitório, próximo da porta, a um
passo do ponto de fuga.
A seguir, é o
normal da sua profissão, todas têm a sua rotina: abrir as pernas, olhar com
olhos de paisagem para os floreados no tecto do quarto, sem considerar
nenhuma incongruência, só aceitar.
É a sua
meditação do despojamento deixar-se ir, vogar, não sonhar com nada.
Os que
conseguem, conseguem relativizar as coisas mais aviltantes.
A profissão não
dá folgas. Oxalá!
Por não dispor
de tempo, não tem espaço para o amor que pede um relógio de baterias duradouras
e empenhos, sem forças para isso.
Na mesma zona, cosmopolita
e suavemente decadente, mas de caras ao rio, há um armazém de sal. Um edifício
mal tratado pelas investidas do clima, desgastado dos anos. Tijolo de
burro por dentro e por fora, sem estuques nem paredes pintadas.
No interior,
num enorme buraco escavado no chão, com a altura de dois homens bem medidos,
existe uma piscina seca cheia de sal grosso. As primeiras camadas estão
ali há mais de cinquenta anos.
A salga
do peixe e da carne é o método mais eficaz de conservação dos alimentos, o sal
é o frigorífico dos veleiros que abalam às terras de finisterra, para
amanhar o manjar deste povo.
O Fernando é o
fiel do armazém, homem sem falas, não por mudez natural mas por ser taciturno.
Cabeça sempre a puxar para baixo, para o chão, que não a levanta ao céu.
Fizesse a descoberta do azul intenso que banha esta cidade e a história seria
diferente: quem o descobre, deixa de ser semiscarúnfio. Mas ele não é desses:
de olhar poesias.
Todas as
actividades têm o seu saber, o momento da aprendizagem, o amadurecimento e a
mestria. Pode parecer fácil, mas acamar sal num depósito tem ciência. Não
é só mandar pazadas até que encha. Não podem haver espaços vazios entre os
cristais do sal. Se o ar encontra caminho para circular, se penetra nas camadas
inferiores, oxida e rouba-lhe a vida, como em tudo.
Escadas de
madeira introduzem uma esplanada sobre a piscina de sal onde ele dorme,
numa enxerga de fina palha, renovada quando se arranja fresca, magnífico
belvedere, a sua babilónia suspensa.
O Fernando é um
empregado exemplar.
E será por
natureza sombrio, ou porque não arranja com quem falar? Talvez.
Os
pesqueiros da Terra Nova enchem os porões de sal uma vez por ano. Os
donos aparecem raramente, são comerciantes abastados da outra margem e parece
que têm uma pequena frota pesqueira no Algarve. Atum para conservas, que são
famosas e esse mar tem fartura deles. Passantes por ali são poucos. Onde vai
ele encontrar vontade de escancarar a boca, ligar o amplificador do peito e
debitar discurso? Só se for aos peixes, e esses, têm tido a sua dose de
faladura: de vez em quando lá aparece alguém a dar-lhes conselho e palpites. Parece
ser uma necessidade cíclica de alguns: dar sermão.
Explicado está
o mutismo involuntário da criatura.
Raramente sai
do armazém, uma vez por semana para jogar hóquei em campo, para os lados do
aeroporto. É um desporto das ilhas britânicas, que nunca despertou paixões, nem
fãs nestes sítios. Não havendo aficionados, também não há muitos com interesse no
tema, o que o faz regressar ao silêncio.
Não é homem de
beber, passa de raspão pelos bares do Cais sem demoras. Não gosta
particularmente dos olhos azuis ou verdes das clientes habituais, talvez por
serem diferentes dos seus, que são castanhos, e quando um par deles o
interpela, sente-se encurralado e torna-se agressivo, ou mais tímido ainda,
dependendo do sexo dos olhos.
Pequena
estatura – todos pequenos até que se poem em bicos dos seus próprios pés - mãos
em desproporção do corpo. Enormes, papudas, destruidoras. Mãos que fazem
estragos nas faces e nos ossos de marinheiros com alcool mais provocador.
Para as
mulheres mal olha, não sabe como, seres que não conhece, que não entraram no
seu reduto, nem de pequeno. Não saberia o que dizer, nem as mãos fortes
saberiam onde pousar, ou o que fazer.
Um dia, acasos
escritos no manual do livro dos acasos, de leitura impedida aos humanos, a
Isabel, que nem se sabe se algumas vez terá reparado no Fernando nas raras
ocasiões em que ele passou pela rua, sentou-se ao seu lado. A casa estava
vazia, sem potenciais clientes e ela mais para se entreter, pediu-lhe uma
bebida.
Sem sim nem
não, mas por entendimento e experiência do empregado, uma garrafa de cerveja
sem copo foi posta em cima do balcão. Bagaço para ele.
Não se falaram,
não se olharam, beberam o que tinham a beber, ele levantou-se e saiu, ela
deixou-se ficar um pouco mais, sem nenhuma emoção em especial. Saiu para a sua
esquina da rua, quando teve de sair e o episódio nem sequer ficou registado nos
calhamaços da memória.
O tempo segue o
seu caminho porque não consegue estar parado. Por vezes, lá mais para a frente,
para trás não há volta, dá saltos de gigante e apaga as distâncias percorridas,
estranhezas de capricho.
Com quarenta
anos não se agarra o cosmos com as mãos, vai escorregando pelos dedos.
A cartografia
dos lugares não mudou, muda quem os frequenta.
Antes
eram marinheiros que ancoravam nos balcões, agora são turistas, com
máquinas de fabricar imagens, esmiuçando os cantos - e mais alguns -
ávidos de um pormenor, arrematar para si, só para si, a essência de um
local de passagem temporário, de um fim-de- semana de fuga, no exotismo do que
é diferente.
Isabel já
não se arrima aos balcões dos bares, que continuam a ter o mesmo nome, mas ela
já não pode entrar: não sente se sente cómoda. São agora locais para
outras mulheres e outros homens, alguns lampinhos, que ensaiam carícias de
outras formas e maneiras.
Fez da esquina,
o seu derradeiro pouso. É o melhor encosto que as ruas dão. Vê passar os
transeuntes e vai inventando jogos de contar os louros e os morenos, quem ganha
naquele dia, uma forma de se esquecer de si mesma e ajudar a que a noite chegue
cedo.
Desapareceram
os marinheiros das paragens desconhecidas, o que lhe faz falta.
Também se acabou-se
o bacalhau para os barcos das velas enfunadas ao vento e à intempérie.
Reformaram-se e
cederam os mares aos filhos, motores potentes que se fazem pressa de ir e
voltar. Até na pesca o romantismo se vestiu de luto.
Agora o gelo
conserva melhor os alimentos. O sal é para os temperar e a sua flor é a mais
apreciada.
No armazém onde
o Fernando trabalha, não há flores e o sal é grosso.
Deixou de haver
trabalho. Como um anacoreta, foi-se deixando aquietar de guardião de um
depósito de ouro branco, que toda a gente esqueceu que existe.
Com os costados
apoiados na parede de tijolo de burro, constrói miniaturas de barcos com as
madeiras dos troncos, os fios de pesca, a cordoaria e tudo o mais que vem na
maré e faz préstimo à arte dos homens.
Faluas,
varinos, traineiras, veleiros.
Com as medidas
e proporções certas de tanto os ter visto passar, os planos vão em linha
direta, do pensamento para as mãos que os executam.
Afinal aquelas
mãos não são rudes, são ponderadas.
Pinta os barcos
em miniatura com restos de tinta marítima e um pincel que improvisou de uma
brocha perdida no armazém. Seca-os ao ar, e eles vão ganhado a patina das
pequenas tempestades, dos ventos e das chuvas e dos sóis quentes, barcos
ancorados na doca seca de um passeio calcetado e virado ao rio.
Outros homens,
desempregados do mar, juntam-se em silêncio, fumam e olham para o espelho de água.
Flutuam os olhos. Soltam-se palavras, palpites de entendimento, notas técnicas
sobre o estaleiro do Fernando, na incongruência do mesmo local onde antes,
muito antes, partiram embarcações tão frágeis, à procura de outros locais onde
os homens pudessem respirar de peito feito.
-Punha isto,
tirava aquilo.
-Que raio de
nome escolheste!
- Foi num dia
assim com o céu a cair em cima do rio que pesquei uma corvina de 50 quilos no
cais da Estação Sul e Sueste.
Monólogos em
camadas, para entreter o tempo.
Deixando um
vigia nos cais dos seus barcos, o Fernando passou pela esquina mais
fundamental da sua vida.
Convidou-a a
uma bebida. Começa a ser hábito, duas vezes em vinte anos.
Ela não disse
que não.
Sentaram-se
noutros bancos num bar de uma rua diferente, sem geografias, com nomes mais
comuns. Uma cerveja, o bagaço.
Início
suficiente e justíssimo.
O silêncio
estando a gosto deixa-se ficar, ocupa os espaços vazios. Mas desta vez
houve palavras, perguntam-se nomes e coisas menos importantes.
Amarados no
balcão daquele bar, descaracterizado, na luminosidade
intermitente de
luzes vermelhas e azuis, muito tímidas, ao som de uma música qualquer, o
Fernando tirou os olhos do chão, a Isabel não os conseguiu tirar de lá.
Gostaram-se.
As mãos
disformes e as hábeis – cada um com as suas – sentiram-se, sentiram o prazer
mais sublime do universo: o toque de duas mãos.
Foram ver os
barcos.
Nessa noite a
Isabel não viu o mundo através da escotilha do seu quarto, viu-o balouçando
numa esplanada suspensa sobre uma piscina de sal. Não o viu, emaranhou-se nele.
Casaram-se
conveniências e ajeitamentos: para o Fernando, olhos doces puseram os olhos nos
seus barcos dos sonhos, encalhados à porta do armazém; para a Isabel, a esquina
deixou de ter sentido: estavam fartas uma da outra, apesar de terem sido
boas amigas.
E depois, viveram.
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