Regularidade plana de terreno, pontuada
escassamente por árvores, tão juntas entre si, que parecem proteger-se de algo,
talvez do vazio que as rodeia, a perder
de vista. Arbustos rasteiros e poucos, ali nascidos nem por quê, nem para quê.
Neste cansaço pontuado pelo vogar pairando
lento de uma ave de rapina, a ajeitar pelo olhar acutilante o momento fatal, do
golpe que há de praticar sem clemência, e no entanto nada de mal faz senão a
sobrevivência do dia, aproximam-se ao longe, ou não tão longe mas dando essa
sensação pela intermitência das ondulações de luz que emana da terra nestes
dias de muito calor, duas figuras, dois homens, aparentemente, calcula-se que o
sejam, não é ainda o tempo das almas penadas, que se passeiam em horas
crepusculares e frias, esquivando-se de contactos.
Existe uma estrada por onde eles vêm,
estreita mas estrada. Passam viaturas aleatoriamente passando indo nas suas
direcções pessoais, desconhecidas, que não poderão entrar na história.
Que andam a fazer esses dois homens, aí
passando, neste cenário descritivamente pouco simpático? Faz calor estando
pouco adiantada ainda a manhã que entra em brumas, mas descerra rapidamente,
escancarando a luz intensa, pondo o céu e a terra ambos amarelados, pela
intensidade e agressividade da própria luz.
Agora já se distinguem melhor. Um, veste uma
camisa verde florida de gosto duvidoso e desenquadrada do cenário. Tem posto um
chapéu branco que não é de palhinha (quem veste uma camisa destas não põe um
chapéu de palhinha). O seu companheiro, ou acompanhante, ou tão só duplo, veste
uma camisa branca, que não compromete, fora das calças, não lhe assenta bem,
percebe-se que é pela proeminência da barriga, que ao puxar a camisa deixa
antever uns refegos de carnes sobrantes, a descaírem na linha da cintura das
calças.
Tem um
gravata preta lassa no colarinho com o botão desabotoado, já se esperava que
fosse assim. A gravata, o seu bico, um estendal, termina ainda o peito vai a
meio. Sobre toda a imponente barriga, só a atravessam longitudinalmente os botões
negros da camisa. Não falta nenhum.
Nesta estrada que não corta em duas partes
essa planície ausente de vida, por onde rumam essas duas almas, sabendo-se,
porque dá para ver, que levam debaixo dos braços nus das camisas de mangas
recortadas, dois grossos livros pretos?
Rumam em passos lentos, vê-se que não levam
pressa.
Não havendo ninguém, compreende-se que
ninguém os observe. A não ser eu, sentado a aproveitar a protecção da sombra
conseguida graciosamente pela intercessão de duas oliveiras, certamente antigas
(pelas rugas entranhadas e muitas da sua pele). E já que me encontro muito a
gosto neste local, aproveito também, ou direi melhor, brinco, a juntar palavras,
dando ao mundo ainda que efémero desse micro-ambiente, frases com intenção de
poesia.
É uma
maneira como outra qualquer, inócua, inofensiva, de passar o tempo. Se alguma
destas se destacar, se fizer eco, posso vir a escrevê-la, num caderno que tenho
à mão, para mais tarde dar-lhe um uso.
Entretanto os dois caminhantes vão-se
aproximando, não restando a menor dúvida que a sua direcção, o seu objectivo, o
que os fez deslocarem-se do seu ponto de partida que desconheço, sou eu, ou
qualquer coisa em mim, que não sei, que lhes interessa.
Puxo do meu caderno veneziano, que muito
estimo, ponho uma posse intelectual que às vezes resulta e afugenta os
vendedores ambulantes das lábias e da conversa fútil, que incomodam porque não
aguentam viver e estarem calados, e dou o melhor para disfarçar que não me dei
conta da sua aproximação, o que é impossível, num terreno destes tão vazio e
lhano.
Ultrapassada a linha de segurança, já dentro
do território da minha intimidade, forço-me a cumprimenta-los e pergunto ao que
vêm.
- Vimos dar-lhe a palavra.
Ando toda a manhã na brincadeira com elas, e
aparecem-me estes, do nada.
Abrem os volumes que se confirma serem
grossos, de capas aparentemente de cabedal, pretas, gastos, com uso, e falam-me
de mensageiros, de leis, de obrigações, de grandes penas, enormes castigos,
purificações possíveis, deixar-me ir, promessas de compensações, paraísos.
Ofereço-lhes em troca, duas frases
encadeadas, frescas desta manhã quente, que acho que não estão nada mal e que –
não foi com propósito -, até rimam, de uma forma educada e sem esforço. Juro-vos
que nem foram frases sensuais ou aparentadas a lascívias e liberdades de
estilo.
O da falsa palhinha branca, e o do babete
negro a imitar uma gravata (nem aqui nem no Iémen), lançam um olhar que
classificaria muito próximo do ódio, não viessem eles, pelo que disseram,
dar-me a palavra. Atiram-se como se não houvesse amanhã (e nisto podem ter
razão) a uma página específica e anteriormente marcada por uma fita, cada um no
seu volumoso calhamaço, e em uníssono, dando a ideia beatífica de um coro
celestial, lançam-me um anátema.
Viram costas e desaparecem na longínqua linha
do horizonte, muito mais rapidamente do que quando vieram no sentido de lá para
cá.
Fico-me, acachapado, deixando voltar a mim os
níveis da felicidade por estar ali.
Volto às palavras e esqueço-me rapidamente
que acabei de ser expulso dos portões da última morada, a luminescente, a
pristina.
Sou um incorrigível pecador.
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