Para se dar valor à importância
vital das histórias que os livros sérios contam, que vimos a amar
incondicionalmente pela sua riqueza e igualmente na forma como estão escritos,
somos levados a ouvir por uma voz escrita que não é a nossa – entrando numa
certa intimidade que esperamos seja perdoada - a história de um casal
improvável unido pelos livros, e que viveu numa tríade do Amor, uma relação a
três, uma poligamia censurável pela sociedade, mas a forma mais apurada que
eles lapidaram para viver a plenitude desse amor que elevaram à categoria de um
culto. Trata-se de uma tríade composta por uma mulher, um homem e os livros.
Deixar
algo dito, que bem pode ser algo que nunca ninguém assim o tenha dito, tão bem
e único, e por essa razão, vir oferecer algo de fundamental para toda a
humanidade. Nunca se sabe.
Para garantir um compartimento
estanque onde não haja fuga de pensamentos, forrou as paredes de livros, leu
todos os que possui e a sala é grande. Não é uma biblioteca particularmente
rigorosa, completa de nenhum tema em particular, é um macramé construído com os
seus despojos de leitor insaciado.
Toda a vida comprou livros aconselhado pela sedução da capa, de um título mais sugestivo ou inesperado, da sensação táctil do toque das folhas, a textura do papel, a sua cor, tudo isto a acontecer simultaneamente sob as ordens do imprevisto, uma força incontornável da natureza. No que aos livros respeita, é um comprar de impulsos, de paixões instantâneas. No que à vida respeita, é um conservador permissivo.
Toda a vida comprou livros aconselhado pela sedução da capa, de um título mais sugestivo ou inesperado, da sensação táctil do toque das folhas, a textura do papel, a sua cor, tudo isto a acontecer simultaneamente sob as ordens do imprevisto, uma força incontornável da natureza. No que aos livros respeita, é um comprar de impulsos, de paixões instantâneas. No que à vida respeita, é um conservador permissivo.
Esse processo é comum a muitos
leitores: são os livros que os chamam, que os atraem para si, pedem para ser
abertos, lidos no momento, pequenas partes, ao acaso do cair dos olhos nas
folhas. Duas frases interessantes, o que basta para se levar um novo livro para
casa, chegar o mais depressa possível, esquecer outras prioridades, sentar-se
na sua poltrona particularmente só sua, e devorar o conteúdo virgem, que se espera no mínimo honesto, o livro que acabou de comprar.
Este personagem, que por comodidade mútua foi decidido chamar Raoul, nos raros momentos livres da sua carreira de Provedor peregrinou pelas livrarias e alfarrabistas afamados em várias terras nacionais e estrangeiras, repetindo e repetindo este processo de inicio de relação com os livros, e foi assim que constituiu o acervo que agora reside com ele num escritório-biblioteca, um esplêndido apartamento burguês, abastado, num bairro reconhecido de Paris onde as grandes, rasgadas, trabalhadas janelas dos prédios, espiam os passeios largos - as porteiras meio-escondidas atrás das portas de entrada dos prédios – em que flanam pessoas descontraídas, bem perfumadas e finas e completamente alheadas do facto de um Ex-Provedor, estar nesse momento, imerso na leitura ou na escrita das palavras que constituem uma das partes de um livro (há que ter em conta e muitos nem consideram isso, que os espaços vazios, as margens, o papel e a sua cor e textura, o tipo de letra e o tamanho, são as outras partes constituintes, igualmente importantes para a bom impressão que causa um livro).
Este personagem, que por comodidade mútua foi decidido chamar Raoul, nos raros momentos livres da sua carreira de Provedor peregrinou pelas livrarias e alfarrabistas afamados em várias terras nacionais e estrangeiras, repetindo e repetindo este processo de inicio de relação com os livros, e foi assim que constituiu o acervo que agora reside com ele num escritório-biblioteca, um esplêndido apartamento burguês, abastado, num bairro reconhecido de Paris onde as grandes, rasgadas, trabalhadas janelas dos prédios, espiam os passeios largos - as porteiras meio-escondidas atrás das portas de entrada dos prédios – em que flanam pessoas descontraídas, bem perfumadas e finas e completamente alheadas do facto de um Ex-Provedor, estar nesse momento, imerso na leitura ou na escrita das palavras que constituem uma das partes de um livro (há que ter em conta e muitos nem consideram isso, que os espaços vazios, as margens, o papel e a sua cor e textura, o tipo de letra e o tamanho, são as outras partes constituintes, igualmente importantes para a bom impressão que causa um livro).
Só recentemente, por estar
reformado dessa nobre profissão das relações do comércio entre os homens,
começou a pôr ordem na sua biblioteca de peças soltas e erráticas, querendo-a
completar com as obras em falta de alguns autores fundamentais, e rechear
convenientemente de algumas correntes de escrita a que ainda não tinha dado
atenção.
Há livros a que regressa vezes
sem conta, outros, lembra-se, procura-os e presta-lhes uma visita mais ou menos
demorada. Muitos nunca mais serão folheados, a menos que mudem de usufrutuário.
Como se constrói uma biblioteca?
Juntando livros que tropeçam em nós, ou juntando segundo uma escolha
determinada, com um plano, pensado, rigoroso?
No seu caso começou por tropeçar,
depois treinou e apurou o andar, traçou um plano de viagens e aproximou-se –
questão de gosto - da companhia das biografias e de algum romance clássico,
desatendendo quase tudo o que se escreveu a partir da segunda metade do século
XX. Uma modernidade enfadonha, degradada nos temas, pouco edificante. Foi o
século em que se começou a escrever mal – raramente alguma coisa nova arrebata
- que vende por acção das campanhas de marketing e das montras das grandes
superfícies e das feiras de livros. São estes preconceitos que cresceram na
cabeça de um homem conservador e não há forma de ele se fazer a uma leitura de
um autor contemporâneo. Falta-lhe um amigo jovem que o encaminhe nesse sentido,
mas ele não participa em tertúlias intelectuais, é eremita por escolha própria.
A sua colecção tem lacunas assinaláveis.
Quando um leitor apaixonado
morre, que destino levam os livros das suas estantes? Talvez ninguém mais os
leia, sendo reduzida a probabilidade dos livros que se fizeram companhia nessa
sala durante décadas, continuarem juntos. Alguns vão sobreviver, outros serão
descuidados. Poucos conseguirão uma guia de transporte para uma nova estante e
terão o respeito que merecem. Uma biblioteca sem dono fica órfã, os livros são
objectos de uma relação única, fiéis, raramente encontram um novo amor quando
lhes desaparece o parente mais querido. Ele também pensa nisto.
No universo das relações entre
seres vivos e não viventes, os livros são os únicos do último grupo, que não executando
a actividade de pensar por vontade própria, manifestam um amor incondicional
para com os seus donos, e só entende isso quem os ama. Não vale portanto a pena
explicar este fenómeno complicado.
Os livros não abandonarão os seus
donos, estão sempre disponíveis, a todo o momento, para reconfortarem ou
distraírem o amado e mesmo para serem maltratados, um masoquismo piedoso que os
livros têm. Neste sentido, os livros são quase como os cães, sempre
disponíveis.
Nos cadernos de apontamentos que
Raoul compra na ponte Vecchia de Veneza – obra artesanal de bons cabedais e
papéis finos, negócio familiar, pai, mãe, filha e caros – dedicou-se à tarefa
de recuperar os trânsitos passados na sua cabeça, guardados (os que se podem
salvar da devastação do tempo) para memória futura.
Estimando maduramente as opções
decentes para ocupar a lenta passagem do tempo que acomete um indivíduo liberto
de obrigações profissionais e não querendo dedicar-se à prática de actividades
licenciosas e fúteis, impróprio das altitudes que escalou na vida, chegou a um
acordo educado com a escrita, uma ocupação inócua e inconsequente, onde
encontrou uma saída airosa para os milhões de palavras despejadas e armazenadas
nos cadernos venezianos à espera de melhores dias, que foram cuidadosamente
preenchidos, com datas no começo e no final, para darem enquadramento
cronológico aos acontecimentos da vida da sua pessoa.
Pode ser que um dia haja quem
tropece na sua história, um familiar longínquo que ainda não se sabe que
existe, um amigo mais novo, a sua própria empregada por entreposta pessoa,
porque não? Esse alguém vai pegar na tarefa de reconstruir os seus caminhos de
escrita, lê-lo cuidadosamente, gravar testemunhos dos que estão vivos,
classificar a obra, e poderá sair uma belíssima biografia, que se for honesta é
a melhor homenagem que se pode prestar a um escritor depois de ido.
Para já ainda está vivo, de boa
saúde sem nada de maligno a germinar que seja detectável. Escreve com afinco,
abundantemente.
A responsabilidade dos afazeres
públicos – que tem custos pessoais elevados – nunca lhe deu tréguas, sempre
emaranhado no trabalho. É chegado o momento de recuperar tempo.
Raoul é um homem austero e a sua
imagem exterior espelha-o, o que isso quer dizer: uma apresentação regida pela
palavra formal, discreta na cor dos fatos, das gravatas, azul-escuro, com
concessões ao cinzento; nas camisas, brancas, raras as outras cores. Nas
palavras com que aborda os outros para tratar das coisas comezinhas do
quotidiano, ou para as mais formais das comunicações, faz uma escolha
criteriosa, uma contenção na demonstração das emoções, sem alteração detectável
de estados de alma.
As palavras que ele utilizou toda
a sua vida para se dirigir ao mundo, foram quase sempre escolhidas de véspera –
como as gravatas – racionais e aborrecidas, porque demasiado coloquiais, uma
linguagem quase sempre técnica, sem liberdade para os adjectivos e os advérbios
e um ou outro verbo usado indecentemente.
Hoje essa vida espartana - o cinto sempre na última casa, a aperta - reflecte-se na escrita, por isso adora os clássicos, pela contenção na descrição dos sentimentos e nas intimidades de cada um.
A reforma tirou alguma
pressão, podia finalmente despir algumas camadas sombrias de formalismo, pôr-se
à vontade, vestir um robe chique cómodo, perfeita substituição dos paletós do
passado. Autorizou-se a isso e despartilhou-se.
A reforma é um regresso à
infância, dizendo melhor, é a verdadeira infância. A primeira passou como um
relâmpago sem que se desse conta e já era adulto, esta, leva-se com a mais
meditativa das calmas, estica-se o tempo até onde dá, lentifica-se tudo para
entrar o mais tarde possível, nos grandes portões do não retorno. A idade
vivida traz consigo o lastro da existência, a memória, a derradeira companheira
para as melhores brincadeiras ainda a serem brincadas. Regressa à cena o amigo
invisível, tudo se repete mais ou menos igual, mas as circunstâncias são diferentes,
as marcas do tempo sublinham as rugas do rosto.
Quando se vê um velho a falar
sozinho, há quem se compadeça e desvie o olhar, vendo nisso sinais da
senilidade, da senescência, o que assusta pela eminência bem presente de poder vir
a acontecer a qualquer um. Acontece que essa é uma apreciação errada: o velho
está a falar sozinho porque está a trocar impressões com a memória, é esse o
seu novo amigo invisível, companheiro das novas aventuras e brincadeiras
O senhor Provedor consome
endemoniado todos os segundos, para resgatar dos depósitos todas as frases e
todas as ideias soltas que compuseram a sua “pegada”. Quer inventariar novas
coerências, actualizações de contextos verosímeis à luz do presente. Um homem
que viveu a vida nos ditames da lógica analítica, não se oferece a devaneios
descontrolados na ficção. Ficção sim, mas comedida.
Metódico portanto – só assim
reencontra nexos nos cadernos de apontamentos, uma biblioteca ambulante que
cabe num saco a tiracolo, que sejam dois. Transplanta os conteúdos para a folha
virtual do computador com cuidados de filatelista, com pinça, liga com a polidez
normativa de um Provedor na reforma os fios das palavras, cose textos
irrepreensíveis de um classicismo rendilhado por algumas excitantes incursões de
novo sabor quase libertino, que agora se concede, pouco a pouco, desde que
desapertou o nó da gravata.
Como cidadão de muitos contactos
e favores em dívida de cobrança, não foi difícil conseguir uma editora de nome
disposta a apostar nele. Nem se discutiram percentagens - ele não corre por
dinheiro – e quanto aos títulos, liberdade total de escolha. É tudo tão fácil
quando os outros genuflexam.
Nos últimos dois anos, os
primeiros na sua nova situação de excedentário, editou um livro de memórias
(que deve ser sempre o primeiro quando se teve um cargo público e se pode vir a
figurar nos manuais da História) e um de pequenos contos – na fronteira com as
crónicas, difícil de classificar, foi mais uma experimentação de estilos e
construção de pequenas histórias, para ganhar mão, acabou por sair bem e então,
porque não editar, foi o que fez.
As memórias venderam pouco: os
amigos e conhecidos do núcleo muito exclusivo da sua corporação. Os contos
tiveram algum sucesso, vai na terceira edição. Não escreve mal e os contos
leem-se rapidamente. Têm a dinâmica do mundo actual: rápido, curto, leve.
Motivado pelo acervo acumulado de
recordações de uma vida inteira, e embalado na esperança de ultrapassar a
barreira psicológica das duas páginas A4 totalmente preenchidas por boa ficção
– de mão feita e ginasticada - lançou-se ao maior dos desafios nesta arte
traiçoeira e desmoralizadora: escrever um romance.
Escrever um romance não é tarefa
fácil. Pede personagens, que também basta um, mesmo um hipotético. Idealizar,
germinar, acender o interruptor da luz de uma nova vida, cuidar e afastar do
caminho as ervas daninhas, protegendo para crescer, alimentar até fazer-se
homem, tudo isto compactado em páginas de livro impresso, um trabalho imenso,
uma obra de grande arte e muitas dores de cabeça.
É como gerar e criar um filho.
Lembram-se as dificuldades
passadas, a deitar contas à obra, o desalento, a euforia, as noites em branco.
E são precisamente essas noites que envelhecem, as que nos damos na escuridão
do ambiente, a prestar contas da vida, fazer remordimentos e contabilidades,
desencantar desculpas.
Foi por isso que o Senhor
Provedor, agora já não, da Câmara de Comércio de Bordéus resolveu primeiro os
assuntos da vida, os mundanos e os profissionais, libertando-se do quotidiano
enfadonho na contabilidade das contas e dos rácios, da justiça dos seus
julgamentos e pareceres, das decisões difíceis, algumas porventura menos
acertadas, matérias que ocupam a cabeça dos homens sérios quando fazem balanços
em mudanças de ciclo.
Foi assim, que resolvidas estas
questões do quotidiano, assumiu os riscos tardios da paternidade, mãe-pai a
tempo inteiro. Para levar o projecto a bom termo contractou uma barriga de
aluguer, aninhada nos esconsos de uma rede neural complexa no seu cérebro e
inseminou-se a si próprio. Ficou grávido de um novo ser. Um ser literário.
Neste momento - é na fase
gestativa que ele se encontra -anda tão absorto que se esquece de
comer. Que o seu primeiro romance seja uma obra-prima, ganhador de prémios
anunciados nas folhas dos jornais, é o mínimo que a sua humildade pede: ele não
é um homem humilde.
Não conta para a estatística da
sua produção literária – assim aconteceu por decisão própria e ponderada - o
versejo, debitado em folhas soltas da mais indiferenciada das proveniências e
texturas, em momentos e ambientes vários, escrito com canetas de aparo de ouro.
Para escrever, que seja com estilo.
Esta fragilidade – do poemeto - é
um pequeno vício que ele esconde, que espera modesto desfecho, devaneios
escondidos em local próprio, alguém os descobrirá um dia, na inventariação dos
espólios dos baús que os escritores gostam de ter em casa.
Pode parecer e se calhar a
descrição deu a entender, que este homem vive sozinho, afastado da espuma dos
dias, recolhido no seu escritório-biblioteca. Não, há mais uma pessoa naquela
casa.
Justina gosta dos livros. Justina
areja casas, suga-lhes o pó. Concilia estes dois afazeres sem incompatibilidade
– a limpeza e a leitura - há quarenta anos. Trabalha fielmente agradecida, para o Senhor Provedor
e outras pessoas importantes, com a discrição de invisibilidade eficaz - não se
dá por ela - uma gente ensimesmada de timidez, os emigrantes oriundos dos
restos da Europa, meridionais, terras de antes do começo do fim do mundo
civilizado.
Teria muitas histórias para
contar – quem não as tem - se se desse ao cuidado (para quê? se morto se vai
ser já amanhã, e é deselegante andar por aí a falar dos outros) de fazer
apontamentos do que viu e ouviu nesses anos de emigrante.
Todo o seu acervo de peripécias está na cabeça: não vê, com razão, proveito em desempacotar episódios antigos. Quando à noite chega a casa - o auge do seu dia - celebra a vida e a sorte que ela lhe deu, em encontro íntimo com um cálice de medronho, prazer quântico mais proveitoso do que puxar pela memória das histórias alheias. É também uma mulher de fé, cristã, frequenta a paróquia do bairro com convicção. Aceita, no entanto, em conversa, as fraquezas e desvarios de alguns homens da igreja.
Justina teve um passado, numa
aldeia de pescadores no Sul antes de chegar a Paris - dado irrelevante, ser no
sul. Já não há aldeias de pescadores no Sul, só turistas, e locais, todos
espertíssimos, que ventilam os apartamentos dos turistas e espanam as poeiras
de algumas.
Russos exploram bares nas praias
e assam sardinhas, descobriram a sua Crimeia ainda mais meridional. Ela nunca mais
voltou, pelo que não sabe nada dos russos, pouco lhe importa quem vive ou deixa
de viver no esconso do mundo, um local que fez questão de esquecer no dia em
que saiu de casa – se podia chamar aquilo casa – no desespero da uma
obrigatória sobrevivência. O gentio está sempre a não recordar a palavra
refugiado, mas não há século que não a entranhe.
Está há tanto tempo em França que
lhe custa o seu idioma nativo, não no falar - fez uma síntese do sotaque
parisino com laivos folclóricos do sotaque do sul, e os ouvintes gostam – mas
no ler, e se do falar ainda o usa quando telefona para os farrapos de família
que deixou nas origens, o ler não lhe dá préstimo, porque não há nada para ela
ler no seu idioma nativo a não ser as revistas de futilidades, e o pasquim dos
crimes, o que chega ao bar da sede dos amigos do Marmelinho, a Associação mais perto de sua casa, onde vai beber uma
imperial e saber as novidades da comunidade pacata.
Justina fez-se uma profissional
das mais competentes no ramo, o ramo da intimidade dos lares alheios.
Com tantos anos investidos no
negócio das limpezas - e boas referências – adquiriu um conhecimento profundo
dos seres visíveis e invisíveis que habitam as casas. Fez doutoramento no
mobiliário, nos objectos de decoração que as pessoas se rodeiam e que espelham
as suas personalidades. Estes detalhes absorvidos pelo convívio prolongado
transformaram-na igualmente numa confidente e amiga, já que por emaranhados que
ela e todos desconhecemos, sempre serviu pessoas solitárias.
Os homens ou desabafam com
frequência ou a vida fica insustentável. E escolhem os confidentes mais
improváveis, ou os que estão à mão. Quem mais perto do senhor Provedor, um
solitário dos afectos, que a senhora Justina, sempre ao virar da sua esquina
nos últimos vinte anos, do quarto para a sala, com longas caminhadas no
corredor comprido do apartamento, ou dirigindo a orquestra de tachos e
utensílios de cozinha, Chefa de mão cheia esta mulher.
Os seus talentos são naturais e
fruto da experimentação. Inventou a fusão do foie gras com a jardineira,
deixando o patrão sem reacção, atónito na pontuação a atribuir ao prato,
esquisito e bom. É raro o jantar em que Justina não seja chamada para receber
elogios e responder a arrastadas perguntas sobre o seu dom da confecção. Há
momentos em que se senta à mesa, ela fala sem pressa, ele ouve com prazer e vai
fazendo perguntas prolongando o gosto da sua companhia.
De volta à cozinha, com um
brilhar de olhos de contentamento que é único – só visto – brinda-se a si mesma
com um bom copo de branco.
Justina, só, em Paris. Fosse de
falar, e os abalos que poderia causar à grande República de França, guardadora
de confissões, colecionadora de segredos – a serem revelados – que abalariam a
confiança no Estado, alguns tão extravagantes que seriam difíceis de conceber e
de acreditar. Isto porque para além do senhor Provedor ela faz ainda serviços
em mais três apartamentos do prédio, onde vivem altos funcionários da Nação,
alguns com vidas privadas recheadas de episódios picantes e vícios de porta fechada.
O senhor Provedor é um homem formal e discreto.
A República pode estar
descansada, Justina não é mulher de desfeitas, segredos são para levar para a
tumba, cremados com as miudezas do corpo.
De todos os patrões, o Senhor
Provedor e Comendador é das pessoas que mais estima. Não se dá por ele enrolado
no silêncio o dia inteiro. Justina afogueia-se de inquietude e vai e volta,
abeira-se da biblioteca-escritório para saber dele, para se aquietar a si
mesma, porque mesmo vendo-se pouco, são dois corações a baterem juntos na
contenção do mesmo espaço. Falta lhes faria se um dia se faltassem.
Para além do que já foi dito,
Justina lê, e gosta bastante.
O Provedor aposentado, quando
publica um livro, oferece o primeiro exemplar autografado a Justina. Ela
sente-se na obrigação de retribuir a gentileza e lê o livro. Ele nem imagina
que ela o poderá ler, a sua intenção fica-se pela simpatia de oferecer um
exemplar à sua mais fiel colaboradora, diria amiga, não fosse manter o
formalismo de classe, que nunca irá abandonar. Mas Justina não é uma psicóloga
de um aspirador qualquer: se um livro é para ler, que seja lido. É como as
igrejas, locais que tanto gosta. Se são bonitas e transmitem sensações de paz e
têm as portas abertas, então é para entrar, o que faz e reza, e todas são suas preferidas
desde que sinta a inexplicável sensação de bem-estar espiritual, que num
sentido mais lato é paz.
Mesmo que o tema e conteúdos não
entrem à primeira – o ex-Provedor é um intelectual, não se contenta com
palavras correntes, escreve-as difíceis e raras de encontrar – ela não desiste
à primeira tentativa, não desiste até compreender.
Para isso, nestes anos todos,
coligiu informação e escreveu para uso próprio um manual de instruções para ler
livros, ferramenta infalível para descodificação de entendimentos e
compreensões. É um manual que contém todas as respostas para todas as
situações, até as mais complicadas.
Como tira as poeiras de muitas
casas e recheios, e anda tudo numa euforia de editar livros, ela encontrou uma
solução expedita para interiorizar e compreender os livros que os patrões lhe
oferecem. Foi pensando nesse assunto enquanto passeava o aspirador pelos
quartos e pouco a pouco construiu mentalmente o manual, que depois transcreveu
num pequeno livrinho - fica melhor, tudo arranjadinho, como deve ser – que a
acompanha para todo o lado. Isso e o rosário.
Transcrevem-se partes do manual:
“Ler os prefácios. Às vezes são mais importantes que o que se segue. Não é raro
o leitor arrepender-se de ter continuado a ler, perdeu tempo e podia ter
passado para outros livros. Só o prefácio seria suficiente. Se persistirem
dúvidas, quando terminar de ler o livro, e for da opinião que o que leu não faz
sentido, volte ao prefácio.”
“Se o prefácio estimulou a
curiosidade, ler as primeiras dez páginas do primeiro capítulo, é suficiente.
Se as palavras foram bem emparedadas em boas frases, dificilmente o escritor
escreverá melhor que as primeiras páginas. Poucos, quase raros, os de génio,
têm resistência suficiente para irem mais longe. Alguns, espertos, escrevem
igualmente bem as últimas páginas, a ver se pega. Na maior parte dos casos, o
que entretanto se passou é pouco importante, e fica na memória o começo e o
fim, e consequentemente na cabeça do leitor a ideia que leu um bom livro.”
“Se for mesmo muito teimoso leia
aleatoriamente uma dúzia de páginas no coração da obra, pode com isso aumentar
a irritação de estar a desperdiçar tempo ou convencer-se de uma vez por todas,
que o livro merece ser lido do princípio até ao fim. Finalize a tarefa lendo
com a maior das atenções o capítulo final.”
“Se não entender uma frase,
comece por ver o significado das palavras que a constituem, uma a uma. Se ainda
assim não entende, pergunte discretamente a alguém que conheça e tenha lido o
livro. Tente o contacto (se ainda for vivo) de quem a escreveu e pergunte. Hoje
é fácil, eles passam a vida a serem exibidos nas feiras e festivais. São
convidados para falarem sobre todos os temas e eles vão, não é fácil ganhar a
vida.”
“Fuja da opinião dos académicos
que sabem sempre mais do que os autores que estudam. Dos críticos literários
também, escrevem melhor que os escritores mas nunca produziram nenhum livro
pela razão simples de não estarem para aí virados, só por isso.”
“Uma dica útil para não ser
apanhado em contradições: sublinhe e decore frases que lhe parecem relevantes e
faça a sua própria história sobre elas. Numa situação de aperto, debite com
convicção e sem gaguejar a sua história."
"Nenhum intelectual
terá coragem de a confrontar e acaba de ganhar assento no Olimpo dos
intelectuais. A partir desse dia, pode dizer todas as aneiras que lhe vierem à
cabeça, que os seus pares vão reverenciar os seus ditos brilhantes e os
académicos vão queimar as pestanas a construírem teses ilegíveis sobre o que
você disse."
“Estes procedimentos simples
habilitam a todo o género de discussão e confronto, com conhecimentos
adquiridos e irrefutáveis sobre as matérias escritas e que se vierem a
escrever.”
“Considerações fundamentais a ter
em conta e atenção:
Quando se dá de caras com um bom
livro, este manual não pode ajudar, o leitor fica automaticamente desarmado,
vale tudo, ler, reler, andar para trás, para a frente, ficar com ar de parvo,
pasmado, de boca aberta, em pose sonhadora, com o livro aberto pousado no colo.
Voltar a ele e emocionar-se.”
“Um bom livro revolve os miolos e
as entranhas, deixa as pessoas frias, emocionais, as que são quentes, geladas,
revira tudo, altera todas as condições, é um encantamento puro.”
“Por último, ao confrontar-se com
um idioma que desconhece, estas indicações deixam de ser válidas, não vale a
pena fazer esforço e insistir numa leitura impossível, já que o anterior método
de dividir as frases por palavras, saber o significado de cada uma e daí
reconstruir o sentido da frase, não faz sentido, e o resultado final não é bom.
Todos os livros deveriam ser lidos nas línguas em que foram escritos. Da poesia
nem se fala. As traduções são aproximações sempre longínquas. Se o tradutor for
um artista, a obra traduzida é um livro novo, diferente do original. Se o tradutor
for mau, a obra é um produto híbrido.”
O Senhor Comendador, desconhece a
existência deste manual, mas estranha as qualidades da Justina no entendimento
das matérias e temas dos seus livros.
Poucos patrões questionam os
domésticos sobre os livros que escrevem, sendo emigrantes ainda menos, se bem
que ser desse sul donde ela veio é menos mau que de outros lugares ainda mais a
sul.
O senhor Provedor não tem a
urticária da xenofobia. Estima muito a Justina, pela sua lealdade e fidelidade,
e o que mais estima é ter uma empregada que trata da casa e ao mesmo tempo
desempoeira a sua mente, dando a pedido, conselho pessoal sobre os temas
filosóficos do mundo.
Apesar de ter cultivado uma
cultura enciclopédica e diversificada – eufemismo propositado - ele sabe muito
pouco do país da sua estimada empregada, desconhece a sua cultura. Leu alguma
coisa de um homem da televisão, campeão de vendas, mas ficou com sede de
literatura; dos clássicos algum Pessoa, mas ler Pessoa pouco diz do país,
apesar de ele ter dito tanto, na descrição dos seus “eu”, deitados numa chaise
longue, em análise de si mesmos, algures num escritório antigo, ou num quarto
onde também havia uma chaise longue, e todos estes ambientes em ruas anónimas
de uma cidade, pouco maior do que uma aldeia grande, uma cidade no país de
Justina.
Ficou ao Comendador – sim o
Senhor Provedor recebeu uma Comenda no 14 de Julho – nas leituras do poeta, uma
ligeira desconfiança sobre essa coisa estranha da melancolia em modo suave, uma
alegre tristeza. Quando esporadicamente pensa sobre isso, num ou outro momento
fugaz em que observa mais atentamente a Justina, vem-lhe a ténue sensação de
reconhecer esse inominável, espelhado no canto do olho da sua fiel colaboradora.
Como se a melancolia estivesse a espreitar do lado de dentro de si, encostada
ao beiral da janela dos olhos, a medo, timidamente, vendo não se querendo dar a
ver.
É mais ou menos aceite sem
discussões infindáveis que ninguém escreve só para si, e quem escreve, mesmo
abjurando, quer deixar notícia ao mundo. Ou então escreve porque está cercado
pela solidão e as palavras são a sua maneira de enganar a vacuidade do tempo que
vive e passa. Só escrevendo se apazigua a enfermidade dilacerante da alma. O
correr da pluma é a gulosa morfina que combate a dor quase insuportável,
suavizando o fluir dos pensamentos, lentamente, até que esmoreça nos sonhos a
última chama do coto da vela.
Não há dúvidas que este homem
ainda tem muito para escrever, e que assim seja, enquanto houver livros,
Justina pode dormir descansada: mantêm o trabalho de absorvedora de pós, até
que um dia venha a reforma. Pode ser que venha a ser acometida do hábito da
escrita, ou então a contar histórias em voz alta para quem a ouça, tem jeito.
Como se pode ver, os escritores,
as mulheres domésticas, e os livros, também se inebriam e perdem a cabeça e o
tino, com os efeitos dessa categoria elevada do Amor incondicional.
Longa vida tenham. Que esse
romance seja original para ser único.
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