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A REFORMA DO PROVEDOR






Para se dar valor à importância vital das histórias que os livros sérios contam, que vimos a amar incondicionalmente pela sua riqueza e igualmente na forma como estão escritos, somos levados a ouvir por uma voz escrita que não é a nossa – entrando numa certa intimidade que esperamos seja perdoada - a história de um casal improvável unido pelos livros, e que viveu numa tríade do Amor, uma relação a três, uma poligamia censurável pela sociedade, mas a forma mais apurada que eles lapidaram para viver a plenitude desse amor que elevaram à categoria de um culto. Trata-se de uma tríade composta por uma mulher, um homem e os livros.

Deixar algo dito, que bem pode ser algo que nunca ninguém assim o tenha dito, tão bem e único, e por essa razão, vir oferecer algo de fundamental para toda a humanidade. Nunca se sabe.

Para garantir um compartimento estanque onde não haja fuga de pensamentos, forrou as paredes de livros, leu todos os que possui e a sala é grande. Não é uma biblioteca particularmente rigorosa, completa de nenhum tema em particular, é um macramé construído com os seus despojos de leitor insaciado.

Toda a vida comprou livros aconselhado pela sedução da capa, de um título mais sugestivo ou inesperado, da sensação táctil do toque das folhas, a textura do papel, a sua cor, tudo isto a acontecer simultaneamente sob as ordens do imprevisto, uma força incontornável da natureza. No que aos livros respeita, é um comprar de impulsos, de paixões instantâneas. No que à vida respeita, é um conservador permissivo.

Esse processo é comum a muitos leitores: são os livros que os chamam, que os atraem para si, pedem para ser abertos, lidos no momento, pequenas partes, ao acaso do cair dos olhos nas folhas. Duas frases interessantes, o que basta para se levar um novo livro para casa, chegar o mais depressa possível, esquecer outras prioridades, sentar-se na sua poltrona particularmente só sua, e devorar o conteúdo virgem, que se espera no mínimo honesto, o livro que acabou de comprar. 

Este personagem, que por comodidade mútua foi decidido chamar Raoul, nos raros momentos livres da sua carreira de Provedor peregrinou pelas livrarias e alfarrabistas afamados em várias terras nacionais e estrangeiras, repetindo e repetindo este processo de inicio de relação com os livros, e foi assim que constituiu o acervo que agora reside com ele num escritório-biblioteca, um esplêndido apartamento burguês, abastado, num bairro reconhecido de Paris onde as grandes, rasgadas, trabalhadas janelas dos prédios, espiam os passeios largos - as porteiras meio-escondidas atrás das portas de entrada dos prédios – em que flanam pessoas descontraídas, bem perfumadas e finas e completamente alheadas do facto de um Ex-Provedor, estar nesse momento, imerso na leitura ou na escrita das palavras que constituem uma das partes de um livro (há que ter em conta e muitos nem consideram isso, que os espaços vazios, as margens, o papel e a sua cor e textura, o tipo de letra e o tamanho, são as outras partes constituintes, igualmente importantes para a bom impressão que causa um livro).

Só recentemente, por estar reformado dessa nobre profissão das relações do comércio entre os homens, começou a pôr ordem na sua biblioteca de peças soltas e erráticas, querendo-a completar com as obras em falta de alguns autores fundamentais, e rechear convenientemente de algumas correntes de escrita a que ainda não tinha dado atenção.

Há livros a que regressa vezes sem conta, outros, lembra-se, procura-os e presta-lhes uma visita mais ou menos demorada. Muitos nunca mais serão folheados, a menos que mudem de usufrutuário.

Como se constrói uma biblioteca? Juntando livros que tropeçam em nós, ou juntando segundo uma escolha determinada, com um plano, pensado, rigoroso?

No seu caso começou por tropeçar, depois treinou e apurou o andar, traçou um plano de viagens e aproximou-se – questão de gosto - da companhia das biografias e de algum romance clássico, desatendendo quase tudo o que se escreveu a partir da segunda metade do século XX. Uma modernidade enfadonha, degradada nos temas, pouco edificante. Foi o século em que se começou a escrever mal – raramente alguma coisa nova arrebata - que vende por acção das campanhas de marketing e das montras das grandes superfícies e das feiras de livros. São estes preconceitos que cresceram na cabeça de um homem conservador e não há forma de ele se fazer a uma leitura de um autor contemporâneo. Falta-lhe um amigo jovem que o encaminhe nesse sentido, mas ele não participa em tertúlias intelectuais, é eremita por escolha própria. A sua colecção tem lacunas assinaláveis.

Quando um leitor apaixonado morre, que destino levam os livros das suas estantes? Talvez ninguém mais os leia, sendo reduzida a probabilidade dos livros que se fizeram companhia nessa sala durante décadas, continuarem juntos. Alguns vão sobreviver, outros serão descuidados. Poucos conseguirão uma guia de transporte para uma nova estante e terão o respeito que merecem. Uma biblioteca sem dono fica órfã, os livros são objectos de uma relação única, fiéis, raramente encontram um novo amor quando lhes desaparece o parente mais querido. Ele também pensa nisto.

No universo das relações entre seres vivos e não viventes, os livros são os únicos do último grupo, que não executando a actividade de pensar por vontade própria, manifestam um amor incondicional para com os seus donos, e só entende isso quem os ama. Não vale portanto a pena explicar este fenómeno complicado.

Os livros não abandonarão os seus donos, estão sempre disponíveis, a todo o momento, para reconfortarem ou distraírem o amado e mesmo para serem maltratados, um masoquismo piedoso que os livros têm. Neste sentido, os livros são quase como os cães, sempre disponíveis.



Nos cadernos de apontamentos que Raoul compra na ponte Vecchia de Veneza – obra artesanal de bons cabedais e papéis finos, negócio familiar, pai, mãe, filha e caros – dedicou-se à tarefa de recuperar os trânsitos passados na sua cabeça, guardados (os que se podem salvar da devastação do tempo) para memória futura.

Estimando maduramente as opções decentes para ocupar a lenta passagem do tempo que acomete um indivíduo liberto de obrigações profissionais e não querendo dedicar-se à prática de actividades licenciosas e fúteis, impróprio das altitudes que escalou na vida, chegou a um acordo educado com a escrita, uma ocupação inócua e inconsequente, onde encontrou uma saída airosa para os milhões de palavras despejadas e armazenadas nos cadernos venezianos à espera de melhores dias, que foram cuidadosamente preenchidos, com datas no começo e no final, para darem enquadramento cronológico aos acontecimentos da vida da sua pessoa.

Pode ser que um dia haja quem tropece na sua história, um familiar longínquo que ainda não se sabe que existe, um amigo mais novo, a sua própria empregada por entreposta pessoa, porque não? Esse alguém vai pegar na tarefa de reconstruir os seus caminhos de escrita, lê-lo cuidadosamente, gravar testemunhos dos que estão vivos, classificar a obra, e poderá sair uma belíssima biografia, que se for honesta é a melhor homenagem que se pode prestar a um escritor depois de ido.

Para já ainda está vivo, de boa saúde sem nada de maligno a germinar que seja detectável. Escreve com afinco, abundantemente.

A responsabilidade dos afazeres públicos – que tem custos pessoais elevados – nunca lhe deu tréguas, sempre emaranhado no trabalho. É chegado o momento de recuperar tempo.

Raoul é um homem austero e a sua imagem exterior espelha-o, o que isso quer dizer: uma apresentação regida pela palavra formal, discreta na cor dos fatos, das gravatas, azul-escuro, com concessões ao cinzento; nas camisas, brancas, raras as outras cores. Nas palavras com que aborda os outros para tratar das coisas comezinhas do quotidiano, ou para as mais formais das comunicações, faz uma escolha criteriosa, uma contenção na demonstração das emoções, sem alteração detectável de estados de alma.

As palavras que ele utilizou toda a sua vida para se dirigir ao mundo, foram quase sempre escolhidas de véspera – como as gravatas – racionais e aborrecidas, porque demasiado coloquiais, uma linguagem quase sempre técnica, sem liberdade para os adjectivos e os advérbios e um ou outro verbo usado indecentemente. 

Hoje essa vida espartana - o cinto sempre na última casa, a aperta - reflecte-se na escrita, por isso adora os clássicos, pela contenção na descrição dos sentimentos e nas intimidades de cada um.

 A reforma tirou alguma pressão, podia finalmente despir algumas camadas sombrias de formalismo, pôr-se à vontade, vestir um robe chique cómodo, perfeita substituição dos paletós do passado. Autorizou-se a isso e despartilhou-se.

A reforma é um regresso à infância, dizendo melhor, é a verdadeira infância. A primeira passou como um relâmpago sem que se desse conta e já era adulto, esta, leva-se com a mais meditativa das calmas, estica-se o tempo até onde dá, lentifica-se tudo para entrar o mais tarde possível, nos grandes portões do não retorno. A idade vivida traz consigo o lastro da existência, a memória, a derradeira companheira para as melhores brincadeiras ainda a serem brincadas. Regressa à cena o amigo invisível, tudo se repete mais ou menos igual, mas as circunstâncias são diferentes, as marcas do tempo sublinham as rugas do rosto.

Quando se vê um velho a falar sozinho, há quem se compadeça e desvie o olhar, vendo nisso sinais da senilidade, da senescência, o que assusta pela eminência bem presente de poder vir a acontecer a qualquer um. Acontece que essa é uma apreciação errada: o velho está a falar sozinho porque está a trocar impressões com a memória, é esse o seu novo amigo invisível, companheiro das novas aventuras e brincadeiras


O senhor Provedor consome endemoniado todos os segundos, para resgatar dos depósitos todas as frases e todas as ideias soltas que compuseram a sua “pegada”. Quer inventariar novas coerências, actualizações de contextos verosímeis à luz do presente. Um homem que viveu a vida nos ditames da lógica analítica, não se oferece a devaneios descontrolados na ficção. Ficção sim, mas comedida.

Metódico portanto – só assim reencontra nexos nos cadernos de apontamentos, uma biblioteca ambulante que cabe num saco a tiracolo, que sejam dois. Transplanta os conteúdos para a folha virtual do computador com cuidados de filatelista, com pinça, liga com a polidez normativa de um Provedor na reforma os fios das palavras, cose textos irrepreensíveis de um classicismo rendilhado por algumas excitantes incursões de novo sabor quase libertino, que agora se concede, pouco a pouco, desde que desapertou o nó da gravata.

Como cidadão de muitos contactos e favores em dívida de cobrança, não foi difícil conseguir uma editora de nome disposta a apostar nele. Nem se discutiram percentagens - ele não corre por dinheiro – e quanto aos títulos, liberdade total de escolha. É tudo tão fácil quando os outros genuflexam.

Nos últimos dois anos, os primeiros na sua nova situação de excedentário, editou um livro de memórias (que deve ser sempre o primeiro quando se teve um cargo público e se pode vir a figurar nos manuais da História) e um de pequenos contos – na fronteira com as crónicas, difícil de classificar, foi mais uma experimentação de estilos e construção de pequenas histórias, para ganhar mão, acabou por sair bem e então, porque não editar, foi o que fez.

As memórias venderam pouco: os amigos e conhecidos do núcleo muito exclusivo da sua corporação. Os contos tiveram algum sucesso, vai na terceira edição. Não escreve mal e os contos leem-se rapidamente. Têm a dinâmica do mundo actual: rápido, curto, leve.

Motivado pelo acervo acumulado de recordações de uma vida inteira, e embalado na esperança de ultrapassar a barreira psicológica das duas páginas A4 totalmente preenchidas por boa ficção – de mão feita e ginasticada - lançou-se ao maior dos desafios nesta arte traiçoeira e desmoralizadora: escrever um romance.

Escrever um romance não é tarefa fácil. Pede personagens, que também basta um, mesmo um hipotético. Idealizar, germinar, acender o interruptor da luz de uma nova vida, cuidar e afastar do caminho as ervas daninhas, protegendo para crescer, alimentar até fazer-se homem, tudo isto compactado em páginas de livro impresso, um trabalho imenso, uma obra de grande arte e muitas dores de cabeça.

É como gerar e criar um filho.

Lembram-se as dificuldades passadas, a deitar contas à obra, o desalento, a euforia, as noites em branco. E são precisamente essas noites que envelhecem, as que nos damos na escuridão do ambiente, a prestar contas da vida, fazer remordimentos e contabilidades, desencantar desculpas.

Foi por isso que o Senhor Provedor, agora já não, da Câmara de Comércio de Bordéus resolveu primeiro os assuntos da vida, os mundanos e os profissionais, libertando-se do quotidiano enfadonho na contabilidade das contas e dos rácios, da justiça dos seus julgamentos e pareceres, das decisões difíceis, algumas porventura menos acertadas, matérias que ocupam a cabeça dos homens sérios quando fazem balanços em mudanças de ciclo.

Foi assim, que resolvidas estas questões do quotidiano, assumiu os riscos tardios da paternidade, mãe-pai a tempo inteiro. Para levar o projecto a bom termo contractou uma barriga de aluguer, aninhada nos esconsos de uma rede neural complexa no seu cérebro e inseminou-se a si próprio. Ficou grávido de um novo ser. Um ser literário.

Neste momento - é na fase gestativa que ele se encontra -anda tão absorto que se esquece de comer. Que o seu primeiro romance seja uma obra-prima, ganhador de prémios anunciados nas folhas dos jornais, é o mínimo que a sua humildade pede: ele não é um homem humilde.

Não conta para a estatística da sua produção literária – assim aconteceu por decisão própria e ponderada - o versejo, debitado em folhas soltas da mais indiferenciada das proveniências e texturas, em momentos e ambientes vários, escrito com canetas de aparo de ouro. Para escrever, que seja com estilo.

Esta fragilidade – do poemeto - é um pequeno vício que ele esconde, que espera modesto desfecho, devaneios escondidos em local próprio, alguém os descobrirá um dia, na inventariação dos espólios dos baús que os escritores gostam de ter em casa.

Pode parecer e se calhar a descrição deu a entender, que este homem vive sozinho, afastado da espuma dos dias, recolhido no seu escritório-biblioteca. Não, há mais uma pessoa naquela casa.

Justina gosta dos livros. Justina areja casas, suga-lhes o pó. Concilia estes dois afazeres sem incompatibilidade – a limpeza e a leitura - há quarenta anos. Trabalha fielmente agradecida, para o Senhor Provedor e outras pessoas importantes, com a discrição de invisibilidade eficaz - não se dá por ela - uma gente ensimesmada de timidez, os emigrantes oriundos dos restos da Europa, meridionais, terras de antes do começo do fim do mundo civilizado.

Teria muitas histórias para contar – quem não as tem - se se desse ao cuidado (para quê? se morto se vai ser já amanhã, e é deselegante andar por aí a falar dos outros) de fazer apontamentos do que viu e ouviu nesses anos de emigrante. 

Todo o seu acervo de peripécias está na cabeça: não vê, com razão, proveito em desempacotar episódios antigos. Quando à noite chega a casa - o auge do seu dia - celebra a vida e a sorte que ela lhe deu, em encontro íntimo com um cálice de medronho, prazer quântico mais proveitoso do que puxar pela memória das histórias alheias. É também uma mulher de fé, cristã, frequenta a paróquia do bairro com convicção. Aceita, no entanto, em conversa, as fraquezas e desvarios de alguns homens da igreja.

Justina teve um passado, numa aldeia de pescadores no Sul antes de chegar a Paris - dado irrelevante, ser no sul. Já não há aldeias de pescadores no Sul, só turistas, e locais, todos espertíssimos, que ventilam os apartamentos dos turistas e espanam as poeiras de algumas.

Russos exploram bares nas praias e assam sardinhas, descobriram a sua Crimeia ainda mais meridional. Ela nunca mais voltou, pelo que não sabe nada dos russos, pouco lhe importa quem vive ou deixa de viver no esconso do mundo, um local que fez questão de esquecer no dia em que saiu de casa – se podia chamar aquilo casa – no desespero da uma obrigatória sobrevivência. O gentio está sempre a não recordar a palavra refugiado, mas não há século que não a entranhe.

Está há tanto tempo em França que lhe custa o seu idioma nativo, não no falar - fez uma síntese do sotaque parisino com laivos folclóricos do sotaque do sul, e os ouvintes gostam – mas no ler, e se do falar ainda o usa quando telefona para os farrapos de família que deixou nas origens, o ler não lhe dá préstimo, porque não há nada para ela ler no seu idioma nativo a não ser as revistas de futilidades, e o pasquim dos crimes, o que chega ao bar da sede dos amigos do Marmelinho, a Associação  mais perto de sua casa, onde vai beber uma imperial e saber as novidades da comunidade pacata.

Justina fez-se uma profissional das mais competentes no ramo, o ramo da intimidade dos lares alheios.

Com tantos anos investidos no negócio das limpezas - e boas referências – adquiriu um conhecimento profundo dos seres visíveis e invisíveis que habitam as casas. Fez doutoramento no mobiliário, nos objectos de decoração que as pessoas se rodeiam e que espelham as suas personalidades. Estes detalhes absorvidos pelo convívio prolongado transformaram-na igualmente numa confidente e amiga, já que por emaranhados que ela e todos desconhecemos, sempre serviu pessoas solitárias.

Os homens ou desabafam com frequência ou a vida fica insustentável. E escolhem os confidentes mais improváveis, ou os que estão à mão. Quem mais perto do senhor Provedor, um solitário dos afectos, que a senhora Justina, sempre ao virar da sua esquina nos últimos vinte anos, do quarto para a sala, com longas caminhadas no corredor comprido do apartamento, ou dirigindo a orquestra de tachos e utensílios de cozinha, Chefa de mão cheia esta mulher.

Os seus talentos são naturais e fruto da experimentação. Inventou a fusão do foie gras com a jardineira, deixando o patrão sem reacção, atónito na pontuação a atribuir ao prato, esquisito e bom. É raro o jantar em que Justina não seja chamada para receber elogios e responder a arrastadas perguntas sobre o seu dom da confecção. Há momentos em que se senta à mesa, ela fala sem pressa, ele ouve com prazer e vai fazendo perguntas prolongando o gosto da sua companhia.

De volta à cozinha, com um brilhar de olhos de contentamento que é único – só visto – brinda-se a si mesma com um bom copo de branco.

Justina, só, em Paris. Fosse de falar, e os abalos que poderia causar à grande República de França, guardadora de confissões, colecionadora de segredos – a serem revelados – que abalariam a confiança no Estado, alguns tão extravagantes que seriam difíceis de conceber e de acreditar. Isto porque para além do senhor Provedor ela faz ainda serviços em mais três apartamentos do prédio, onde vivem altos funcionários da Nação, alguns com vidas privadas recheadas de episódios picantes e vícios de porta fechada.

O senhor Provedor é um homem formal e discreto.

A República pode estar descansada, Justina não é mulher de desfeitas, segredos são para levar para a tumba, cremados com as miudezas do corpo.

De todos os patrões, o Senhor Provedor e Comendador é das pessoas que mais estima. Não se dá por ele enrolado no silêncio o dia inteiro. Justina afogueia-se de inquietude e vai e volta, abeira-se da biblioteca-escritório para saber dele, para se aquietar a si mesma, porque mesmo vendo-se pouco, são dois corações a baterem juntos na contenção do mesmo espaço. Falta lhes faria se um dia se faltassem.

Para além do que já foi dito, Justina lê, e gosta bastante.

O Provedor aposentado, quando publica um livro, oferece o primeiro exemplar autografado a Justina. Ela sente-se na obrigação de retribuir a gentileza e lê o livro. Ele nem imagina que ela o poderá ler, a sua intenção fica-se pela simpatia de oferecer um exemplar à sua mais fiel colaboradora, diria amiga, não fosse manter o formalismo de classe, que nunca irá abandonar. Mas Justina não é uma psicóloga de um aspirador qualquer: se um livro é para ler, que seja lido. É como as igrejas, locais que tanto gosta. Se são bonitas e transmitem sensações de paz e têm as portas abertas, então é para entrar, o que faz e reza, e todas são suas preferidas desde que sinta a inexplicável sensação de bem-estar espiritual, que num sentido mais lato é paz.

Mesmo que o tema e conteúdos não entrem à primeira – o ex-Provedor é um intelectual, não se contenta com palavras correntes, escreve-as difíceis e raras de encontrar – ela não desiste à primeira tentativa, não desiste até compreender. 

Para isso, nestes anos todos, coligiu informação e escreveu para uso próprio um manual de instruções para ler livros, ferramenta infalível para descodificação de entendimentos e compreensões. É um manual que contém todas as respostas para todas as situações, até as mais complicadas.

Como tira as poeiras de muitas casas e recheios, e anda tudo numa euforia de editar livros, ela encontrou uma solução expedita para interiorizar e compreender os livros que os patrões lhe oferecem. Foi pensando nesse assunto enquanto passeava o aspirador pelos quartos e pouco a pouco construiu mentalmente o manual, que depois transcreveu num pequeno livrinho - fica melhor, tudo arranjadinho, como deve ser – que a acompanha para todo o lado. Isso e o rosário.

Transcrevem-se partes do manual: “Ler os prefácios. Às vezes são mais importantes que o que se segue. Não é raro o leitor arrepender-se de ter continuado a ler, perdeu tempo e podia ter passado para outros livros. Só o prefácio seria suficiente. Se persistirem dúvidas, quando terminar de ler o livro, e for da opinião que o que leu não faz sentido, volte ao prefácio.”

“Se o prefácio estimulou a curiosidade, ler as primeiras dez páginas do primeiro capítulo, é suficiente. Se as palavras foram bem emparedadas em boas frases, dificilmente o escritor escreverá melhor que as primeiras páginas. Poucos, quase raros, os de génio, têm resistência suficiente para irem mais longe. Alguns, espertos, escrevem igualmente bem as últimas páginas, a ver se pega. Na maior parte dos casos, o que entretanto se passou é pouco importante, e fica na memória o começo e o fim, e consequentemente na cabeça do leitor a ideia que leu um bom livro.”

“Se for mesmo muito teimoso leia aleatoriamente uma dúzia de páginas no coração da obra, pode com isso aumentar a irritação de estar a desperdiçar tempo ou convencer-se de uma vez por todas, que o livro merece ser lido do princípio até ao fim. Finalize a tarefa lendo com a maior das atenções o capítulo final.”

“Se não entender uma frase, comece por ver o significado das palavras que a constituem, uma a uma. Se ainda assim não entende, pergunte discretamente a alguém que conheça e tenha lido o livro. Tente o contacto (se ainda for vivo) de quem a escreveu e pergunte. Hoje é fácil, eles passam a vida a serem exibidos nas feiras e festivais. São convidados para falarem sobre todos os temas e eles vão, não é fácil ganhar a vida.”

“Fuja da opinião dos académicos que sabem sempre mais do que os autores que estudam. Dos críticos literários também, escrevem melhor que os escritores mas nunca produziram nenhum livro pela razão simples de não estarem para aí virados, só por isso.”

“Uma dica útil para não ser apanhado em contradições: sublinhe e decore frases que lhe parecem relevantes e faça a sua própria história sobre elas. Numa situação de aperto, debite com convicção e sem gaguejar a sua história."

 "Nenhum intelectual terá coragem de a confrontar e acaba de ganhar assento no Olimpo dos intelectuais. A partir desse dia, pode dizer todas as aneiras que lhe vierem à cabeça, que os seus pares vão reverenciar os seus ditos brilhantes e os académicos vão queimar as pestanas a construírem teses ilegíveis sobre o que você disse."

“Estes procedimentos simples habilitam a todo o género de discussão e confronto, com conhecimentos adquiridos e irrefutáveis sobre as matérias escritas e que se vierem a escrever.”

“Considerações fundamentais a ter em conta e atenção:
Quando se dá de caras com um bom livro, este manual não pode ajudar, o leitor fica automaticamente desarmado, vale tudo, ler, reler, andar para trás, para a frente, ficar com ar de parvo, pasmado, de boca aberta, em pose sonhadora, com o livro aberto pousado no colo. Voltar a ele e emocionar-se.”

“Um bom livro revolve os miolos e as entranhas, deixa as pessoas frias, emocionais, as que são quentes, geladas, revira tudo, altera todas as condições, é um encantamento puro.”

“Por último, ao confrontar-se com um idioma que desconhece, estas indicações deixam de ser válidas, não vale a pena fazer esforço e insistir numa leitura impossível, já que o anterior método de dividir as frases por palavras, saber o significado de cada uma e daí reconstruir o sentido da frase, não faz sentido, e o resultado final não é bom. Todos os livros deveriam ser lidos nas línguas em que foram escritos. Da poesia nem se fala. As traduções são aproximações sempre longínquas. Se o tradutor for um artista, a obra traduzida é um livro novo, diferente do original. Se o tradutor for mau, a obra é um produto híbrido.”

O Senhor Comendador, desconhece a existência deste manual, mas estranha as qualidades da Justina no entendimento das matérias e temas dos seus livros.
Poucos patrões questionam os domésticos sobre os livros que escrevem, sendo emigrantes ainda menos, se bem que ser desse sul donde ela veio é menos mau que de outros lugares ainda mais a sul.

O senhor Provedor não tem a urticária da xenofobia. Estima muito a Justina, pela sua lealdade e fidelidade, e o que mais estima é ter uma empregada que trata da casa e ao mesmo tempo desempoeira a sua mente, dando a pedido, conselho pessoal sobre os temas filosóficos do mundo. 

Apesar de ter cultivado uma cultura enciclopédica e diversificada – eufemismo propositado - ele sabe muito pouco do país da sua estimada empregada, desconhece a sua cultura. Leu alguma coisa de um homem da televisão, campeão de vendas, mas ficou com sede de literatura; dos clássicos algum Pessoa, mas ler Pessoa pouco diz do país, apesar de ele ter dito tanto, na descrição dos seus “eu”, deitados numa chaise longue, em análise de si mesmos, algures num escritório antigo, ou num quarto onde também havia uma chaise longue, e todos estes ambientes em ruas anónimas de uma cidade, pouco maior do que uma aldeia grande, uma cidade no país de Justina.

Ficou ao Comendador – sim o Senhor Provedor recebeu uma Comenda no 14 de Julho – nas leituras do poeta, uma ligeira desconfiança sobre essa coisa estranha da melancolia em modo suave, uma alegre tristeza. Quando esporadicamente pensa sobre isso, num ou outro momento fugaz em que observa mais atentamente a Justina, vem-lhe a ténue sensação de reconhecer esse inominável, espelhado no canto do olho da sua fiel colaboradora. Como se a melancolia estivesse a espreitar do lado de dentro de si, encostada ao beiral da janela dos olhos, a medo, timidamente, vendo não se querendo dar a ver.

É mais ou menos aceite sem discussões infindáveis que ninguém escreve só para si, e quem escreve, mesmo abjurando, quer deixar notícia ao mundo. Ou então escreve porque está cercado pela solidão e as palavras são a sua maneira de enganar a vacuidade do tempo que vive e passa. Só escrevendo se apazigua a enfermidade dilacerante da alma. O correr da pluma é a gulosa morfina que combate a dor quase insuportável, suavizando o fluir dos pensamentos, lentamente, até que esmoreça nos sonhos a última chama do coto da vela.

Não há dúvidas que este homem ainda tem muito para escrever, e que assim seja, enquanto houver livros, Justina pode dormir descansada: mantêm o trabalho de absorvedora de pós, até que um dia venha a reforma. Pode ser que venha a ser acometida do hábito da escrita, ou então a contar histórias em voz alta para quem a ouça, tem jeito.

Como se pode ver, os escritores, as mulheres domésticas, e os livros, também se inebriam e perdem a cabeça e o tino, com os efeitos dessa categoria elevada do Amor incondicional.

Longa vida tenham. Que esse romance seja original para ser único.





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  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,