Uma cidade é um ser vivente? É um espaço habitado por seres,
num fluxo constante de vida e morte. Isso dá-lhe carácter. São eles que lhe dão
vida, cunham a sua identidade, esses seres específicos desse lugar maior que
outros lugares, que a escolheram para viverem, e morrerem, nessa localização
exacta e não outra.Uma cidade é um útero, e nunca se viu nenhum ser no tempo da
gestação assassinar a sua própria mãe, porque o útero é o local mais agradável
que se conhece para germinar a vida. Uma cidade é o cemitério, onde se
depositam para o descanso final os entes queridos, e nunca se viu ninguém que
ama devassar a última morada dos seus. Uma cidade é o eixo do mundo, esse
pequeno mundo que a povoa, que se levanta todos os dias para ir às suas coisas
do dia, que se deita para descansar das suas coisas do dia, na noite,
repousando, repousante, a recuperar energia e tranquilidade. Tudo de importante
e supérfluo acontece na cidade. Há cidades famosas, que todos querem visitar,
há cidades que ninguém conhece, a não ser os seus. Há as que se prostituem, as
que se destacam, as que ficam na memória, as que se querem esquecer. Nisso, as
cidades são como os homens, imitam-nos, pelo que há de tudo, para todos os feitios.
Há cidades benditas, cidades amaldiçoadas, cidades inimigas, cidades encantadoras,
cidades insuportáveis. A cidade Goutha, que eu não conhecia, pudesse eu não a
ter conhecido, tem para mim a cara de uma criança a chorar, assustada, sofrida.
Uma cidade que é assim, de uma tristeza envenenada de fora, deve ser o sitio
mais inóspito, um recôndito, um deserto sem vida e frio. Como eu teria gostado
de nunca a ter visitado com os meus olhos, à distância física de um ecrã de
televisão, essa cidade a escorrer sangue torrencial pelas ruas devassadas pelas
bombas dos exércitos do Mal. É que ver
uma criança chorar, faz-me impotente, desalenta-me o facto fundamental de não a
poder embalar nos meus baços, dar abrigo, adormece-la e olhar assim para ela,
agora dormida e pacificada, a cara que imagino ser a dos anjinhos.
Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi...
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