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DO AMOR INCONDICIONAL - 9 - DO DONO







«Foi um anticiclone que se acomodou entreparedes, no meu apartamento. Instalou-se sem pedir licença e nunca mais se alteraram as condições climatéricas. Quatro estações num dia, com fenómenos extremos inesperados.

É o meu cão.

Os filhos, a quem se deve perdoar tudo, para resolverem as suas questões internas, do foro íntimo ou talvez da moral, e apaziguarem alguma luminescência de remorsos nos corações, apareceram com ele em casa. Domingo, o dia instituído para cumprirem muito compreensivelmente a contragosto – não lhes calha em caminho compreende-se que transtorne o dia – a sua dose obrigada de fingimentos (sou injusto?) e preocupações muitas acerca da minha solidão e outras pieguices, que são suas e não minhas.

O dia da visita, cada vez mais espaçada, cada vez mais apressada, e como os compreendo, a vida não tem contemplações com os que se sentam à beira do caminho. Há que estar sempre em movimento, o que já não é o meu caso, andei o que tinha para andar, agora gosto de apanhar sol na cara. Pode ser se faz favor, toda a duração aproveitável do tempo de um dia.

A ideia de que a idade amacia as consciências e com isso amadurece os comportamentos, não passa disso: uma boa ideia. Que se vem a revelar ser, na maioria dos casos, o oposto, o avesso dessa ideia: aumentamos os níveis de remordimentos e a raiva que se aguenta entredentes é vazada numa conversa sem palavras ditas, só pensadas, o que para eles se torna ininteligível, só ouvem o eco de sons desconexos.

“O paizinho está de novo a falar assim, desencontrado no dizer. Está cada vez pior, coitado!”

“Será que ele percebe que não está a dizer coisa com coisa?”

“Terá ele ainda a noção do real?”

“o real”

“Tenho tanta pena”

“Pena”

“Comiseração”

“Compaixão!”

“Vou-me já embora, que isto é forte de mais”

“Vou contigo, para mim também”

Eu, a saber que eles julgam que eu já estou fora de todos os prazos, e a entender a conversa, e gozar comigo mesmo, porque o dizer assim é a forma de eu os estar a gozar a eles. Dá-me para isso, fiquei azedo.

De quando em vez vou inventando umas palavras novas, admito que possam até constituírem frases ininteligíveis, mas daí a terem pena! Se entrassem no jogo divertíamo-nos muito mais, mas hoje já ninguém se diverte como antigamente, porque antigamente é que foi bom em tudo.

São as teias familiares, todas complexas, mas inexoravelmente todos as tecem mesmo os que vivem acompanhados dos seus fantasmas, sem família que os visite. Alguns inventam uma, para não estarem tão sós.

Foi pouco depois de a mãe nos ter abandonado. Estava tão farta disto quanto eu, mas íamo-nos aguentando. A encapuzada, apoiada na foice, para dar o sinal óbvio do seu nome, veio demasiado cedo à sua procura, e ela reconheceu-a. Não se incomodou com isso, sabia descansada que estava para acontecer a todo o momento. Como tinha relações privilegiadas com quem trata desses assuntos (era uma mulher religiosa, com bons contactos no escritório dos passaportes para o além, que eu desconheço que exista), negociou a sua partida antecipada, sem me avisar. Talvez não tenha conseguido incluir-me na viagem, ou preferiu abrir primeiro o caminho sozinha- Conforta-me pensar assim.

Partiu e eu fiquei a falar comigo próprio e a sofrer. E é quando ficamos a falar dessa forma patética, só com o retorno da nossa voz, que tomamos realmente nota do eco da solidão.

Senti-me atraiçoado. Chorei torrencialmente e a dor e esse manancial de lágrimas descontroladas, acabou por suavizar, aos poucos, quando me cansaram os olhos. Deixou de oprimir o coração, instalando-se em modo persistente suave, como tristeza irremediável, uma resignação para o resto da vida. Perdi a minha companheira, ganhei essa desdita, chamada perda, a nova vizinha permanente do lado, a parceira recente para me acompanhar, os dois à janela de cada um, nos últimos farrapos da vida.

Uma catástrofe não é só um fenómeno da natureza, é também dos homens, eclode de dentro para fora. A seguir instala-se o absoluto vazio, e com ele, o silêncio.

Com a catástrofe de ter perdido o meu amor, dos passeios a dois, das longas e arrastadas conversas, das intimidades dos pequenos gestos e das rotinas juntos, percebi que era agora o tempo das limpezas. De arejar e espanar o pó.

Tinha que recomeçar tudo, não havia outra escolha, não se pode viver para trás, tropeçamos no primeiro escolho, e ficamos prostrados no chão, e não será a hérnia que nos vai ajudar a levantar. Aproveitei o momento para me ver livre dos bricabraques que acumulamos sem dar conta. Agarramo-nos e não queremos largar coisas perfeitamente inúteis, que só foram úteis num espaço muito curto em que eram novidade, que já não nos lembramos e esquecemos há muito que existem. Na próxima morada sem código postal não vão fazer falta.

Objectos e a memórias, falo disso. Temos a obrigação por decência nossa de as libertar senão ficam por aí, poluentes, a criar desarmonias nos nossos. O património. A herança. A irresoluta conflituosa questão da posse.

Dividi tudo, que não era muito, o mais equitativamente que soube e mesmo assim houve amuos e recadinhos. Como calculava, pelos livros não se interessaram, o meu maior tesouro. Reparti-los em partes iguais pelos filhos não tinha sentido. Começaria logo por ter grandes dúvidas sobre a correcta utilização do bom senso nas minhas decisões. Teria dúvidas em quem entregar a Virgínia, o Marai não é para qualquer um, se o Borges seria o mais adequado para o João, ou se à Maria lhe daria jeito e proveito o Pessoa. Mas grave ainda, é que alguns desses autores habituados há muito a conviverem juntos, às suas tertúlias, nas minhas estantes, iriam, separados, sentir a falta dos parceiros das cavaqueiras literárias noturnas. Separá-los seria fazer-lhes a mesma partida que a minha mulher me fez. Fez por obrigação, ter-me-ia levado se pudesse.

Como nenhum fez questão de ser o guardião da minha biblioteca, fico com ela e quando me acontecer o desfecho, qua a ofereçam à Junta de Freguesia, ou vendam por atacado. O mais provável é que os da Junta nem a venham recolher por falta de meios disponíveis ou porque nenhum munícipe frequenta uma biblioteca pública, muito menos para ler livros, se for um jornal talvez. Andam sempre a mendigar meios, os das Juntas disto e daquilo, e nas alturas das eleições autárquicas, ficam frenéticos a asfaltar ruas sem saída e fazerem jardins relvados em esquinas onde ninguém passa. Para isso, o votinho, aparece logo o dinheiro, ou a dívida aumenta.

Nessa altura estarei tão afastado desse assunto trivial, que me será indiferente o destino da minha biblioteca pessoal, que deixou de o ser por passamento do seu proprietário. Se não a queimarem, ou reciclarem, pode ser que alguns livros consigam encontrar uma estante de abrigo, que os cuide como eu cuidei. Os livros foram sem dúvida nenhuma o amor da minha vida. Tão incondicional e mútuo como o dos filhos.

Estou para aqui com este azedume todo a queixar-me deles mas é coisa de velho. Claro que os amo, os filhos, são os meus.

O enredo começou com uma conversa banal, numa dessas visitas de domingo. Os seus argumentos eram óbvios e percebia-se que antes de me virem visitar, tinham construído entre todos, um guião: “Precisas de companhia”,”pode acontecer-te alguma coisa durante a noite e não tens ninguém à mão”, “um dia cais na banheira, sabias que é onde acontecem mais acidentes? partes a bacia e não te mexes mais”,” há sítios muito bons, arranjas novos amigos, tens com que te entreter durante o dia…”,” não perdes a tua independência, podes sair se quiseres”.

Quando finalmente perceberam que enquanto eu não fosse apanhado no manto do grande esquecimento, o apagão definitivo, e mantivesse alguma lucidez e orgulho próprios para sorrir diplomaticamente às suas propostas indecorosas de me quererem depositar num lar, o melhor era manter as coisas como elas estavam. Era mais sensato darem uma folga a este tema, um intervalo, voltarem à carga tempo depois.
Conferenciaram (noras, genros, netos, amigos do trabalho) e chegaram a uma solução que lhes pareceu adequada.

Trouxeram-no para casa num domingo, dia 21 de Março (não sei se foi simbólico pelo inicio da primavera. Não sei se eles dão valor a esse tipo de datas e veem nisso mais do que coincidências).

Peludo. Peludo e estridente. Peludo, estridente e as mandíbulas em duas fileiras, uma em cima, outra em baixo, de dentes-agulhas finíssimos e ávidos de penetrarem em material apropriado, um qualquer, e a minha própria carne era perfeita para satisfazer as suas intenções irresponsáveis, de cachorro. Uma criança com quatro patas, cheia de pelo, tricolor, e sem um nome.

Aceitei-o, com reservas.

Mijava e cagava como se não houvesse amanhã. Nem respeitava a cama onde dormia. Se a vossa mãe visse como lhe pôs a casa! Nos primeiros meses a D. Lídia (duas vezes por semana, sete euros à hora),ucraniana competentíssima e imensa, espumava e gesticulava como se exprimisse as emoções em modo latino, dez anos emigrada e já a apanhar o espirito da coisa! Eu que desconfiava ao fim de todos estes anos – cinco a trabalhar connosco - que ela não era um ser senciente! Afinal tinha emoções, e latinas. Boa mulher, lá estou eu com negrume a falar mal das pessoas.

Esta prenda dos meus filhos apaziguou-lhes a consciência, e com a consciência resolvida, justificada de terem sido sensíveis e bons filhos, começaram gradualmente a espaçar ainda mais as visitas, deixando praticamente de aparecer.
Compreendo, aceito e já fiz o mesmo.

Os almoços passaram a ser mensais, depois escassos - datas mais importantes, obrigatoriedades de calendário - passando nesta fase terminal do nosso afastamento, ao uso do telefonema como meio de comunicação.

Foi um alívio para todos. Eu ainda me lembro, quando os meus pais estavam no fim, o que me custava visitá-los. Arde ver a velhice apoderar-se dos corpos, dentro e fora, rugar a pele, os pensamentos, densificar os fluidos, os sangues, o jorro das palavras, antes cristalinas, agora, embotadas, pastosas, num pinga-pinga, lento, quase final. Vê-los assim e ao mesmo tempo estar a vê-los na sua fase de imortais, quando todos eramos muito mais novos, sem rugas por dentro e nem por fora, a levarem-nos ao colo, meio adormecidos, depois de uma visita qualquer a um qualquer amigo ou familiar, quando eramos pequeníssimos, e porque é que o tempo passou a correr, com alguns dias, os maus, que pareceram uma eternidade? Eu quero ser ontem com eles também.

A casa onde nasci e me criei continua a ser a mesma, diferente apesar de igual. Com a partida da Teresa, ficou impregnada do cheiro da não vida, apesar de eu não ser capaz de descrever o cheiro da morte, mas sei que sinto que a tem, e eu sou velho e vou brevemente acrescentar o cheiro dela ao meu, mas a casa será vendida a um jovem casal em inicio de vida, que não vai saber das histórias passadas desta casa e vai pintá-la de cores frescas e mobilá-la com móveis modernos, funcionais, e vão fazer uma história nova com um cheiro de velas perfumado. Até um dia.

A vida é madrasta, sempre a fugir das mãos. Os filhos, os meus netos, consomem com nadas os tempos livres que lhes restam, os trabalhos são competitivos, exigem dedicação total, esvaziam a cabeça das pessoas. O sucesso é a medalha mais ridícula que se pode vir a ganhar, arrasta os incautos para abismos de ânsias descontroladas. Estão a cair num voo picado, no buraco negro e a quererem mais sucesso, sabendo, ou pelo menos desconfiando, que vão acabar por esborrachar-se quando baterem no fundo, que nunca se sabe quando é.

Por telefone, esta era a desculpa que davam de não me visitarem com regularidade, mas mandam recordações dos netos e dizem que têm saudades. Uma ova. Amo-os mesmo assim, não os trocava.

Desculpas gaguejadas, mentiras piedosas. Para os inquietar e deixar encostados à parede do remorso, não respondo às chamadas, estico o silêncio quanto posso. Mas depois vem a pena, baixo a guarda e ligo-lhes.

No início, o canídeo (levou tempo a ter um nome, Augusto ficou) deu-me trabalho. Habituara-me a estar sozinho, e quando se está sozinho tornamo-nos territoriais, até mesmo na disposição - à nossa maneira - dos objectos que nos rodeiam (se alguém me visita, estou sempre a ver se não mexe em nada, e se mexe olho-o com uma intensidade que o deixa inseguro, não se ponha com ideias, de se assenhorear do meu espaço). O cão tinha vida a mais, não parava quieto. E numa situação destas, sobra muito tempo para a asneira.

O começo desta relação não foi fácil, mas habituei-me e fiquei dependente dele, com coisas pequenas, por exemplo quando me apercebia que ele não estava deitado aos meus pés, dando por mim a chamá-lo, a procurá-lo pela casa, intervalando da leitura, a única actividade de prazer que mantenho, se bem não tenha a certeza que agora entenda correctamente tudo o que leio, e levo muito mais a passar de página.

Quando isso aconteceu, a evidência aos meus olhos de estarmos dependentes um do outro, aceitei que tínhamos uma relação familiar, tema que para ele sempre foi inquestionável desde o dia, o primeiro, em que se viu aflito porque de perna curta, para subir para a cama – a minha – e a escolheu como a sua cama. Autorizou-me desde aí a utilizá-la em partilha de bem.

Chama-se Augusto, já disse. Nome humano para um cão de raça comprovada com certificado de linhagem. Tem antepassados com apelidos pomposos, como alguns de nós. No mundo dos cães como no nosso, ter um nome comprido é meio caminho percorrido para chegar mais cedo onde se quer. Este tem linhagem e onde ele quis chegar foi certamente até mim.

Se alguém se quiser desfazer de um rafeiro, sem apelido – há-os espertíssimos – ninguém lhe pega. Se for um exemplar de raça puríssima, encaixa-se sempre. Com os homens e as mulheres também é assim.

Tornámo-nos inseparáveis. Não substituiu a Teresa, é um amor diferente, mas nem consigo imaginar o que seria perdê-lo.

As nossas rotinas são banais. Eu durmo pouco, sonho muito, levanto-me cedo a maioria dos dias, sempre a tentar escapar das memórias pesadas da história do passado, não porque tenha sido um assassino ou coisa que se pareça, mas porque  se misturam os enredos na cabeça nesse estado sem controlo que é dormir, e depois criam episódios e acontecimentos com desfechos vivos e nítidos, desagradáveis, que nos acompanham ao longo do dia, colados a nós, não se desvanecem, projecções constantemente repetidas, sem dar descanso ao homem da máquina.

Levanto-me de madrugada. O Augusto deixa-se ficar, leva contado o tempo que gasto na minha higiene pessoal, que lhe dá mais vinte minutos de descanso. Pequeno-almoçamos na cozinha e assistimos às primeiras notícias da manhã (o televisor está na bancada de mármore ao lado da torradeira e da máquina de café, um bom alinhamento) ainda não suficientemente despertos para sermos afectados por elas, esperançosos que o dia novo seja pelo menos razoável para o mundo em geral. Para nós, se não houver doença súbita, desastre ou carta das finanças, fica assinalado como positivo. Se decorrer na normalidade que se espera, o Augusto e eu ficamos registados na história desse dia como protagonistas principais (é uma mentira que inventei e de que me lembro diariamente, para justificar a incompreensão que tenho do valor e sentido da existência humana).

Tenho uma bicicleta que prezo muito, com uma cesta de rede presa no guiador e uso as duas como veículo de passeio e transporte. Quando ele era pequeno ia sentado na cesta, à frente. Sendo um grande orelhudo, quando a velocidade aumentava ou fazia vento, ficava com um ar de cão de banda desenhada. As pessoas riam-se, diziam coisas simpáticas, e nós orgulhosos de sermos vistos assim, esvoaçantes e um pouco excêntricos, inundávamo-nos de uma grande e radiosa felicidade.

Hoje o Augusto é quase do tamanho da bicicleta, mas ainda tenta sentar-se na cesta, todos os dias repete este número. Eu estou convencido que é “uma piada privada”, só nossa, uma forma sua de gozar com a situação ridícula de eu manter uma cesta presa no volante da bicicleta, como se fosse ao mercado comprar flores para casa. Finjo que não entendo mas foi ele que inventou esta brincadeira, para me rebaixar. Sabe muito apesar de ser cão.

Todas as manhãs faça o tempo que fizer e salvo uma grande preguiça – que acontece esporadicamente - damos um bom passeio junto à praia, e como ninguém espera por nós e somos livres, terminamos quando muito bem nos apetece.

Gostamos de ver o mar. Tranquilizam-me as ondas (suaves ou revoltosas, gosto das duas). Ele porque gosta de nadar. Acho ultrajante e elementar aquela brincadeira parva de atirar o pau ou a bola de ténis amarela - vezes sem conta -  e o cão - incontáveis vezes - ir buscá-la para a depositar a nossos pés, na ansiedade que antecede o momento de voltarmos a atirar os objectos para a água.É uma atitude mesquinha para o animal. Mão merece ser tratado assim.

O Augusto é um cão inteligente e muito educadamente senta-se, olha para mim, e eu autorizo-o a ir a banhos. Enquanto ele pratica esse hábito salutar, eu sento-me e distraio-me a olhar para ele. Noutros dias ligo a máquina das recordações e revejo episódios da vida com a Teresa os bons episódios, ou recuo ainda mais e vou buscar coisas dos tempos da minha pequenez. Nalguns dias dedico-me particularmente a pensar no futuro, algo que ninguém sabe fazer porque ainda não passou por ele. Antecipo muito. Não tenho medo da morte nem imagino a imortalidade como uma escolha voluntária. Deve ser um tédio, chato.

Depois de ver o mar e o Augusto terminar os seus exercícios de natação sincronizada, vamos ao mercado fazer as compras do dia. Podia ir uma vez por semana, mas indo todos os dias consumo mais tempo, o que nos convém enormemente, mais a mim do que a ele. Tenho a impressão que o tempo não seja uma preocupação sua.

Tenho um cesto de palhinha que utilizo há mais de trinta anos, lembrei-me agora de o dizer. Os vendedores da banca da fruta e dos legumes viram-me ficar velho, e eu ao cesto. Voltamos a casa, o Augusto fica a descansar, ligo a televisão para lhe fazer companhia e eu vou à pastelaria.

Tenho uma mesa marcada, a que está encostada à janela que me dá acesso visual ao jardim de oliveiras no outro lado da rua com pouco trânsito. Adoro as oliveiras não sei porquê, e sempre pensei que se um dia tivesse uma casa de campo, teria uma janela ampla na minha sala de estar, onde me sentaria num sofá muito confortável a olhar espiritualmente para um jardim de oliveiras, que à noite seria iluminado, para poder continuar a admirá-las espiritualmente.
Tomo uma bica e leio o jornal “Diário do Mundo”. Gosto deste jornal, ainda não banalizou o horror.

Volto a casa e sou recebido lambuzadamente. Almoçamos na cozinha, sou um cozinheiro empenhado. Ele come ração e uns mimos de vez em quando sempre. A seguir vamos para a sala emitir sons pessoais cada um para seu lado.

Veio-me agora à cabeça que a sala morreu, não tem utilidade. Quando os miúdos eram pequenos e a Teresa, uma mulher que tinha vida e energia para vender, a sala era o ponto de encontro, o eixo da família, onde tomávamos em conjunto as decisões importantes, ríamos genuinamente, chorávamos quando tinha que ser.

Agora sou eu, o Augusto e o aparelho de televisão. Deixaram de haver decisões importantes, só conta corrente.
No final da tarde vamos ao jardim, eu para desenferrujar as articulações, ele para se desanuviar e conviver com os seus amigos, que andam a fazer o mesmo. Este cão passa demasiado tempo comigo, tem que se dar com os seus, um dia destes está parvo como nós, começa a ladrar com sotaque humano.

O jantar é a minha refeição preferida. Olhando para trás, penso que tomei as decisões mais importantes depois de uma conversa de jantar. Bebo um bom copo de vinho.

Para ser sincero a conversa já não me faz falta. Prosei o suficiente sobre todos os temas, com todo o tipo de gente. Nessa matéria estou arrumado, não preciso de acrescentar nada e como dizia antes, esta telepatia com o Augusto basta-me.

Quando ocasionalmente quero dizer mal dos políticos e da próstata, desabafo na pastelaria, alivio-me e fica a questão resolvida.

Com tudo isto distraí-me, já dei a volta ao dia, e continuo a debitar parvoíces sem interesse. As minhas desculpas.

Como me pediram um testemunho sobre o amor, quis falar do meu cão Augusto.

Vivemos os dois uma grande aventura, os meus filhos fizeram muito bem em o terem trazido para casa, adiou a minha mudança de instalações para um lar solução final, e germinou um amor de tamanho incomensurável.

Isto não é uma amizade entre um homem e um cão, é mais, tanto é mais que não há uma palavra adequada que o diga, explique. É um amor, é o que é.

Quando um de nós partir – espero que seja eu, não aguentaria perdê-lo – o que vai ser do outro? Vai logo a seguir.

Se interessa saber e para rematar este testemunho, não conheço na natureza nenhum animal que dê a vida por outro da sua espécie (talvez alguns homens pelos filhos). Só os cães dão a sua vida por nós! É único. É lindo. É sublime.

Não me lembro de amar tanto, como é amar-te assim.

Augusto é um cão orelhudo que adora andar de bicicleta.


Sou pertença sua a quem ele quer como ninguém.»



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