Caminham juntos há dias, tempo interminável que deixa de se
sentir como tempo quando se dão passos determinados, concentrados no caminho,
só nisso, o tanto que isso é.
Quase não se consegue descrever a paisagem, nem se imaginava
antes essa impossibilidade, tudo aparenta ser descritível e depois não se
encontram palavras. É muito difícil descrever o branco. Soam insuficientes as
palavras, as exactas, quantificar a sensação de frio que sentem os poucos
animais e pouquíssimos homens que vagueiam por essa extensão do nada, enorme, a
perder de vista, uma imcomparável imensidão, a que se espraia no local que
atravessa o eixo imaginário que assinala o sul do mundo. A terra do branco
puro.
A paralisia do olhar que acontece quando se pisa pela primeira
vez essa superfície, entende-se porque não é fácil descrever o nada.
Mesmo no curto período do verão a temperatura é escandalosa,
ditatorial. Chamar verão a um frio extremo é uma simpatia linguística, um
cinismo. Este Sul é o congelador do mundo. Do tamanho de um pequeno infinito –
só pequeno porque se lhe acha um fim -, quase só alvo e vácuo, afinal enorme.
É uma região que não aceita a vida, não convivem bem. Poucos são
os que se atrevem a confirmar ou a provocar essa incompatibilidade, provoquem e
saem vencidos. É um local onde ninguém quer viver, no entanto é um ninho de
amor, tão improvável que não se acredita, só em história, e abstracta. Ficção.
Não, é uma verdade: naquele local, no mais rude dos mais rudes climas, acontece
amor. Há quem faça deste deserto de gelo e intempérie sem tréguas, o seu lar
temporário, o ninho, a incubadora de futuro.
Nem perguntando - e a quem? - se explicam as razões da escolha
tão incompreensível deste lugar para praticar o ritual mais puro da partilha e
da garantia de um bilhete para amanhã: o amor a dois que frutifica e se
multiplica.
Ninguém sabe porque a natureza escolheu para esta pequena
comunidade, nas possibilidades que dá o mundo a todos, esta aberração de local
inóspito para procriar. São tão simpáticos que não se imagina que estejam a
sofrer um castigo por algo do seu passado e condenados, por isso, a uma tal
provação. Nada disso. É mesmo assim, calhou-lhes na graça.
Racha o frio, silva agudamente o vento. Um esforço sobre-animal.
Um casal, não só por serem dois, mas porque são dois feitos um, ao
que der e vier, avança lentamente - quase não avança - fustigado por um vento
sem adjectivos que o favoreçam, que insiste em impedir-lhes a progressão. Um
muro invisível feito de nada, a fazer-se intransponível, um sopro de vendaval
constante e fortíssimo, desaprovando o avanço destes seres, criaturas da
criação, mais teimosos e determinados do que esta, são as que vencem.
Atrás deles e à sua frente caminham outros casais, igualmente
todos em uns, em silêncio, esforçadamente, se quisessem e a apetecer, não se
fariam ouvir. As palavras seriam imediatamente arrastadas dali para fora, para
uma lonjura, levadas por um vento insensível e cruel. Só a sua voz prevalece,
apequenando a criação, rebaixando os que caminham, que persistem numa missão
heróica e anónima para todo o restante mundo que sobra, mas fundamental para a
sua espécie.
A sinfonia ribombante e dramática representada pela natureza
agreste enche de som todo o espaço, em níveis que causam danos à audição. É um
som com o volume altíssimo, agudo, que fere os ouvintes e assusta. Impede
qualquer outra manifestação sonora. Por serem as condições essas, os
caminhantes preferem a introspeção da sua mudez, assim concentram-se melhor,
pensando sem ruídos no objectivo final.
Caminham, caminham, caminham... e tão devagar.
O grupo peregrino avança lentamente poupando energias para
privações prolongadas que se antecipam. Uns sabem o que os espera, outros não
imaginam. Para uns não é a primeira vez que em adultos fazem este trajecto, no
entanto estão em minoria. Todos, um dia, saíram deste mesmo local, nascidos
aqui. Fizeram os que conseguiram chegar vivos, a sua primeira viagem até ao
mar, e não sendo caçados pelas focas, ou as belas mas terríveis orcas, nadaram
as suas vidas como torpedos nos oceanos frios, descansando em sóis débeis de
calor por serem terras do fim do mundo, mas ainda assim reconfortantes, em
ilhas remotas do Sul, e escreveram as suas cadernetas com as datas todas e
importantes das vidas pessoais dos pinguins. Adultos feitos, voltam agora por
amor, cumprindo o destino, impelidos por um magnetismo forte, inadiável,
irresistível, atávico, o apelo do amor.
Os machos, fazem prova de um cavalheirismo fora de moda,
oferecendo os corpos à tempestade para protegerem as companheiras. O amor -que
se dane a repetição reiterada e propositada - é uma colagem arbitrária de
detalhes, que umas vezes faz quadros lindos para pendurar na parede - aí ficam
- para serem apreciados até ao esquecimento dos tempos ou com o apagamento na
memória dos sucessores, dos nomes dos rostos protagonistas de aventuras
passadas.
Para onde se dirige este grupo de mantos negros esvoaçantes que
protegem o corpo da feiura do clima? Vão para onde, no sítio do nada? O que é o
onde, se tudo é igual, a sensação continuada de se estar sempre no mesmo sítio.
Pequenos passos apressados curtos - quase ridículo - a forma da
forma do andar. A magnífica imagem de pássaros-bala que executam mergulhos de
voltear a cabeça, transfigura-se num caminhar patético, de banda desenhada,
Pequenos passos que balanceiam o corpo, como um pêndulo, a fazerem figura de
pinguins, o que são.
O destino marca cem quilómetros na meta, e percorrer cem
quilómetros nestas condições é dar uma volta ao mundo, competindo contra todas
as borrascas e fantasmas
Bastantes ficam pelo caminho, uns mesmos quase, quase lá. É
assim, está tão longe a meta dos que chegam quase como a dos que ficam pouco
depois da partida. Nenhum corta a fita, oficialmente são dados como
redundantes.
Voltando à paisagem, o que se vê quando os nevoeiros sobem as
cortinas em intervalos efémeros, é uma interminável planície branca, recortada
de picos agrestes e blocos de gelo, fracturas brancas na monotonia do branco,
lugar inóspito, desagradável. Um belo mortífero, um paraíso-inferno.
Com o histerismo do vento, a sensação de insignificância dos
seres que percorrem o caminho, é igualmente um grande susto, a qualquer momento
podem ser arrancados como um simples grão quase sem peso, projectados a grande
distância.
O ridículo da sua pequenez, que mal se deixa ver no cenário,
minúsculos pontos pretos, é esmagada pela natureza no seu esplendor
avassalador: o gigante e o anão. A luta mítica mil vezes repetida.
Caminham há dias, sem pausas, evoluindo pouco, tão pouco, que se
julga estarem parados. Mas não, após um mês neste esforço superlativo, terminam
a peregrinação. Nem todos, repete-se. Exaustos.
O local onde chegam pouco ou nada difere do caminho feito: é pristino,
monótono, gelado. Não se sabe porque é neste preciso local, sempre o mesmo, não
há respostas para este tipo de perguntas, coisas da natureza.
Esta não é uma viagem espiritual, a meta não desagua num
terreiro plano de um santuário, não são esperados por ninguém, nem deste, nem
do outro mundo, para celebrações ecuménicas. Aqui não há chamamentos por
encomenda.
Deus não visita este lugar. Deus tem frio e poupa-se.
Contra todas as expectativas e considerações já contadas e mais
do que ditas, eles dirigem-se para ali num propósito elementar, primordial: o
propósito do amor.
Sim, o amor. Razão suficiente, sem justificação nem carimbo nem
selo para autenticar.
Estes casais, fintam as impossibilidades climatéricas, os gumes
cortantes destas geografias longínquas, para virem amar no fim do mundo, e
gerarem o fruto da sua paixão transmudada em amor: fazer um filho.
Tudo isto por um filho. Compreende-se agora o desafio.
Todos os anos, de há milhar sobre milhar de anos atrás, marcam
encontro neste local, num dia específico do ano, somente para se abraçarem,
beijarem-se comovidamente, executarem sem falhas a linguagem dos corpos que se
acariciam, se unem, amando-se e fazendo a faísca da vida.
Estão ali para isso e todavia, esse acto belíssimo, é rodeado
das maiores privações, a natureza a pôr à prova numa selecção natural, em que
só ganha o que mais ama, ou tudo perde quem mais amou, jogos dissipados,
difusos, em que as acções se encadeiam numa lógica opaca.
O amor é um pacto de resiliência e beijos. Cumpridos o Artigo Um
e o Dois, é eterno.
Os casais que terminam esta etapa iniciam de imediato as suas núpcias,
todo o tempo é a ganhar tempo, e as provações que já foram muitas ainda mal
começaram.
Agora é o momento da materialização do amor, e amam-se
intensamente, tanto como se tivessem de o consumir de uma vez única, não há uma
segunda oportunidade.
Depois da sua realização objectiva, não têm nada mais para
fazer, a não ser um finca-pé com a espera, estáticos, juntos, ele e ela,
aguardando o amadurecimento do futuro plantado nas profundezas de um útero de
uma ave simpática que não voa, mas que ama perdidamente, não havendo nenhuma
ligação entre as duas.
Três meses. Uma hibernação. Um ápice de tempo nenhum para se
completar a gestação, uma nova vida. Tempo suficiente para moldar a perfeição.
Os futuros pais não se alimentam, não bebem, mal se mexem, nada.
As energias que restam são para defrontarem as condições adversas. Reduzem as
funções do corpo ao mínimo. São muitos, encostam-se uns aos outros para
aprisionar o calor. E aí ficam, estáticos, aquecendo-se como podem. É neste
espirito de grupo coeso que o conseguem. Sozinhos são nada.
Obedecendo a um acordo primordial gravado no código da sua espécie,
todos os que formam este conjunto mudam alternadamente, ordeiramente, de
posição. Os que estão mais expostos trocam com os que estão no núcleo,
sucessivamente. Garantem o aquecimento para todos. Este conjunto de muitos
forma um organismo múltiplo único, no funcionamento afinado de uma pequena sociedade.
A espera vai chegar ao fim, cumprindo-se o prazo genético
estabelecido. Num dia como qualquer outro, mas marcado na sua agenda como dia
de um nascimento, esperançoso desde os primeiros momentos alvos de um sol
irradiante a reflectir faíscas de luz, a lembrar larvas de um vulcão, sobre o
manto antigo – a história da Terra está disposta em camadas - de gelo, os
pequenos filhos de seus pais tão lindos, os seres mais lindos, é sempre assim, nascem,
indefesos pinguins, trôpegos, balbuciantes, os filhos são os seres mais
perfeitos do mundo. Começa nesse momento inaugural, a descontar o tempo que
resta, a vida não tem tempos mortos, uma vez o mecanismo em andamento, não há
intervalos para descanso.
Um nascimento é uma alegria que verte lágrimas. A emoção
desbragada, o sentimento, a comoção do sentimento a querer-se contido mas a
estilhaçar no regaço arfante, a qualquer instante. As boas-vindas a um novo
membro da comunidade, faltavas tu, há quanto te esperávamos sem saber que era a
ti que esperávamos.
Uma sorte em milhões de milhões, a jogar em favor das
possibilidades do jogo das sortes da vida. A conjugação complicada: intenções
dos envolvidos, acções dos interessados, fenómenos a favorecer os acontecimentos
improváveis ainda assim bem-vindos, probabilidades em jogo, conseguir vencer e
vir, para dar de caras com o mundo.
No deserto infernal, a mãe que já não se alimenta há muito
tempo, a sentir no intimo o anúncio do limite das forças, não tem oportunidade
para gozar essa felicidade familiar, não tem outra opção senão partir,
repetindo o mesmo caminho, pisando desta vez ao contrário, rumando ao mar,
fonte de alimento, fonte de vida.
Vai procurar o sustento, antes um agora três, tantos, uma
família. Ela agora é a guardiã de outra alma, uma alma que habita um corpo novo
construído dentro de si com cimentos seus. Estas mães partem sem garantias de
regresso, sem outras alternativas senão irem, todas mães, se tiver que ser e
tem partem, por eles., e no insucesso de um azar que lhes aconteça, morrem
todos.
No interregno da ausência, um vazio a acrescentar ao vazio do
local onde se vive esta irrealidade, o pai faz do seu corpo uma casa, o abrigo,
protege o neonato, tão frágil. Não se lhe apague o lampejo da vida, que a mãe
regresse, e se confirme ao pequerrucho que melhores expectativas continuam em
cima da mesa das sortes.
Para o alimentar enquanto a mãe não volta, oxalá, o pai faz das suas
entranhas vida, do fel doçura, muito pouco, mas é o que tem e pode, regurgita
num esforço superior ao seu de regurgitar o quase inexistente, conseguindo um
resto de nutrientes essenciais, nada mais para dar, tudo dado nos limites.
Continuam assim, a rotina da espera. A vida em intervalo, numa
esperança que não é fé, é determinação, e aguentam os vendavais. São estóicos. A
mãe vai conseguir, consegue sempre, o pai sobreviverá – mãe-heroína, pai-herói
– dando razão à esperança, que acredita sempre na sobrevivência de um amanhã,
personificado neste pequeno ser que esbraceja para vingar. É uma história que
mesmo havendo tragédia só pode acabar bem.
Repetindo os relambórios do tempo, sempre os mesmos,
desnovelando-se infinitamente, igual, a mãe conclui a peregrinação, o longo caminho
que vem do mar, pela terceira vez, sempre a diminuírem as possibilidades de
sucesso, mas a acontecer uma desgraça do acaso, ou do destino, não é por
desistência, a acontecer é uma arbitrariedade, e a estas não se presta atenção,
não se convençam em demasia.
Está quase. Nos últimos quilómetros começa a gritar num berreiro
de pinguins, o mais alto que pode, contra os volumes sibilantes do vento que
abafa todos os ruídos. Os gritos destas mães são agora mais poderosos do que os
ventos, sobrepõem-se a eles, urram mais alto. Ela fá-lo com todas as
contrariedades e desafios, tem uma força interior inabalável, a força de mãe.
Pai e filho, por sua vez animados por uma reunião de energias
inqualificáveis, chamam por ela, reencaminham-se mutuamente. Um farol sonoro a
indicar o rumo do bom porto. Na dificuldade colocada por uma visibilidade
cinzenta e turva, quase sólida, eles acabam por se reencontrar na confusão de
uma pequena multidão de seres iguais a gritarem muito.
Quando finalmente se veem e reúnem de novo, o primeiro gesto da
mãe é o de alimentar o amante, no limite da vida. Olha depois para o filho que
não sabe ainda o que está de importante a acontecer, naquele momento decisivo
para a humanidade dos pinguins, ela expectante, comove-se. Verte uma lágrima
que congelou imediatamente, ou deu a sensação disso, chorarão estes animais? Não
se confirma, o que foi passou. Na realidade não interessa, não acrescenta, os
livros não devem contar tudo. Está muitas vezes no que fica em aberto, na
possibilidade de, o fluir do enredo dos livros.
Deixam a germinar seguimentos,
sentidos, coisas estranhas ou não, em ecos de pensamento na cabeça de quem os
lê.
Quando acalmam os sentimentos, apaziguados pela ternura e pelo
desvelo, mãe e pai baixam e encostam as suas cabeças, tão cansados, tão
amantes, tão realizados. Visto ao longe, mas suficientemente perto para se ver,
parece que desenham a figura de um coração. É um belo enquadramento. Ficam-se
assim, amando-se muito.
Esta história é real, existe e cumpre-se todos os anos, há muito
tempo. É a história das histórias de amor incondicional mais forte que se
conhece ao cimo da terra e nos conhecimentos do universo: o dos Pinguins
Imperadores no Pólo Sul do planeta azul.
Há outros animais que são igualmente exímios no amor.
Alguns
homens mimetizam essa pulsão ancestral, muitos são misóginos, simplesmente
egoístas, ou absolutamente idiotas, mas os que amam e quando o fazem bem,
diz-se que atingem uma felicidade intraduzível.
Prova-se aqui depois de muitos trabalhos, que existe o amor
incondicional, mesmo que leve a discussões filosóficos e outras, sem desfechos
definitivos.
Os pinguins Imperadores não se lembram de uma discussão, só
conhecem Amor, por isso são felizes.
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