Avançar para o conteúdo principal

DO AMOR INCONDICINAL - 11 - PAIS E FILHOS






Caminham juntos há dias, tempo interminável que deixa de se sentir como tempo quando se dão passos determinados, concentrados no caminho, só nisso, o tanto que isso é.

Quase não se consegue descrever a paisagem, nem se imaginava antes essa impossibilidade, tudo aparenta ser descritível e depois não se encontram palavras. É muito difícil descrever o branco. Soam insuficientes as palavras, as exactas, quantificar a sensação de frio que sentem os poucos animais e pouquíssimos homens que vagueiam por essa extensão do nada, enorme, a perder de vista, uma imcomparável imensidão, a que se espraia no local que atravessa o eixo imaginário que assinala o sul do mundo. A terra do branco puro.

A paralisia do olhar que acontece quando se pisa pela primeira vez essa superfície, entende-se porque não é fácil descrever o nada.

Mesmo no curto período do verão a temperatura é escandalosa, ditatorial. Chamar verão a um frio extremo é uma simpatia linguística, um cinismo. Este Sul é o congelador do mundo. Do tamanho de um pequeno infinito – só pequeno porque se lhe acha um fim -, quase só alvo e vácuo, afinal enorme.

É uma região que não aceita a vida, não convivem bem. Poucos são os que se atrevem a confirmar ou a provocar essa incompatibilidade, provoquem e saem vencidos. É um local onde ninguém quer viver, no entanto é um ninho de amor, tão improvável que não se acredita, só em história, e abstracta. Ficção. Não, é uma verdade: naquele local, no mais rude dos mais rudes climas, acontece amor. Há quem faça deste deserto de gelo e intempérie sem tréguas, o seu lar temporário, o ninho, a incubadora de futuro.

Nem perguntando - e a quem? - se explicam as razões da escolha tão incompreensível deste lugar para praticar o ritual mais puro da partilha e da garantia de um bilhete para amanhã: o amor a dois que frutifica e se multiplica.

Ninguém sabe porque a natureza escolheu para esta pequena comunidade, nas possibilidades que dá o mundo a todos, esta aberração de local inóspito para procriar. São tão simpáticos que não se imagina que estejam a sofrer um castigo por algo do seu passado e condenados, por isso, a uma tal provação. Nada disso. É mesmo assim, calhou-lhes na graça.

Racha o frio, silva agudamente o vento. Um esforço sobre-animal.

Um casal, não só por serem dois, mas porque são dois feitos um, ao que der e vier, avança lentamente - quase não avança - fustigado por um vento sem adjectivos que o favoreçam, que insiste em impedir-lhes a progressão. Um muro invisível feito de nada, a fazer-se intransponível, um sopro de vendaval constante e fortíssimo, desaprovando o avanço destes seres, criaturas da criação, mais teimosos e determinados do que esta, são as que vencem.

Atrás deles e à sua frente caminham outros casais, igualmente todos em uns, em silêncio, esforçadamente, se quisessem e a apetecer, não se fariam ouvir. As palavras seriam imediatamente arrastadas dali para fora, para uma lonjura, levadas por um vento insensível e cruel. Só a sua voz prevalece, apequenando a criação, rebaixando os que caminham, que persistem numa missão heróica e anónima para todo o restante mundo que sobra, mas fundamental para a sua espécie.

A sinfonia ribombante e dramática representada pela natureza agreste enche de som todo o espaço, em níveis que causam danos à audição. É um som com o volume altíssimo, agudo, que fere os ouvintes e assusta. Impede qualquer outra manifestação sonora. Por serem as condições essas, os caminhantes preferem a introspeção da sua mudez, assim concentram-se melhor, pensando sem ruídos no objectivo final.

Caminham, caminham, caminham... e tão devagar.

O grupo peregrino avança lentamente poupando energias para privações prolongadas que se antecipam. Uns sabem o que os espera, outros não imaginam. Para uns não é a primeira vez que em adultos fazem este trajecto, no entanto estão em minoria. Todos, um dia, saíram deste mesmo local, nascidos aqui. Fizeram os que conseguiram chegar vivos, a sua primeira viagem até ao mar, e não sendo caçados pelas focas, ou as belas mas terríveis orcas, nadaram as suas vidas como torpedos nos oceanos frios, descansando em sóis débeis de calor por serem terras do fim do mundo, mas ainda assim reconfortantes, em ilhas remotas do Sul, e escreveram as suas cadernetas com as datas todas e importantes das vidas pessoais dos pinguins. Adultos feitos, voltam agora por amor, cumprindo o destino, impelidos por um magnetismo forte, inadiável, irresistível, atávico, o apelo do amor.

Os machos, fazem prova de um cavalheirismo fora de moda, oferecendo os corpos à tempestade para protegerem as companheiras. O amor -que se dane a repetição reiterada e propositada - é uma colagem arbitrária de detalhes, que umas vezes faz quadros lindos para pendurar na parede - aí ficam - para serem apreciados até ao esquecimento dos tempos ou com o apagamento na memória dos sucessores, dos nomes dos rostos protagonistas de aventuras passadas.

Para onde se dirige este grupo de mantos negros esvoaçantes que protegem o corpo da feiura do clima? Vão para onde, no sítio do nada? O que é o onde, se tudo é igual, a sensação continuada de se estar sempre no mesmo sítio.

Pequenos passos apressados curtos - quase ridículo - a forma da forma do andar. A magnífica imagem de pássaros-bala que executam mergulhos de voltear a cabeça, transfigura-se num caminhar patético, de banda desenhada, Pequenos passos que balanceiam o corpo, como um pêndulo, a fazerem figura de pinguins, o que são.

O destino marca cem quilómetros na meta, e percorrer cem quilómetros nestas condições é dar uma volta ao mundo, competindo contra todas as borrascas e fantasmas

Bastantes ficam pelo caminho, uns mesmos quase, quase lá. É assim, está tão longe a meta dos que chegam quase como a dos que ficam pouco depois da partida. Nenhum corta a fita, oficialmente são dados como redundantes.

Voltando à paisagem, o que se vê quando os nevoeiros sobem as cortinas em intervalos efémeros, é uma interminável planície branca, recortada de picos agrestes e blocos de gelo, fracturas brancas na monotonia do branco, lugar inóspito, desagradável. Um belo mortífero, um paraíso-inferno.

Com o histerismo do vento, a sensação de insignificância dos seres que percorrem o caminho, é igualmente um grande susto, a qualquer momento podem ser arrancados como um simples grão quase sem peso, projectados a grande distância. 

O ridículo da sua pequenez, que mal se deixa ver no cenário, minúsculos pontos pretos, é esmagada pela natureza no seu esplendor avassalador: o gigante e o anão. A luta mítica mil vezes repetida.

Caminham há dias, sem pausas, evoluindo pouco, tão pouco, que se julga estarem parados. Mas não, após um mês neste esforço superlativo, terminam a peregrinação. Nem todos, repete-se. Exaustos.

O local onde chegam pouco ou nada difere do caminho feito: é pristino, monótono, gelado. Não se sabe porque é neste preciso local, sempre o mesmo, não há respostas para este tipo de perguntas, coisas da natureza.

Esta não é uma viagem espiritual, a meta não desagua num terreiro plano de um santuário, não são esperados por ninguém, nem deste, nem do outro mundo, para celebrações ecuménicas. Aqui não há chamamentos por encomenda. 
Deus não visita este lugar. Deus tem frio e poupa-se.

Contra todas as expectativas e considerações já contadas e mais do que ditas, eles dirigem-se para ali num propósito elementar, primordial: o propósito do amor.
Sim, o amor. Razão suficiente, sem justificação nem carimbo nem selo para autenticar.

Estes casais, fintam as impossibilidades climatéricas, os gumes cortantes destas geografias longínquas, para virem amar no fim do mundo, e gerarem o fruto da sua paixão transmudada em amor: fazer um filho.

Tudo isto por um filho. Compreende-se agora o desafio.

Todos os anos, de há milhar sobre milhar de anos atrás, marcam encontro neste local, num dia específico do ano, somente para se abraçarem, beijarem-se comovidamente, executarem sem falhas a linguagem dos corpos que se acariciam, se unem, amando-se e fazendo a faísca da vida.

Estão ali para isso e todavia, esse acto belíssimo, é rodeado das maiores privações, a natureza a pôr à prova numa selecção natural, em que só ganha o que mais ama, ou tudo perde quem mais amou, jogos dissipados, difusos, em que as acções se encadeiam numa lógica opaca.

O amor é um pacto de resiliência e beijos. Cumpridos o Artigo Um e o Dois, é eterno.

Os casais que terminam esta etapa iniciam de imediato as suas núpcias, todo o tempo é a ganhar tempo, e as provações que já foram muitas ainda mal começaram.

Agora é o momento da materialização do amor, e amam-se intensamente, tanto como se tivessem de o consumir de uma vez única, não há uma segunda oportunidade.

Depois da sua realização objectiva, não têm nada mais para fazer, a não ser um finca-pé com a espera, estáticos, juntos, ele e ela, aguardando o amadurecimento do futuro plantado nas profundezas de um útero de uma ave simpática que não voa, mas que ama perdidamente, não havendo nenhuma ligação entre as duas.

Três meses. Uma hibernação. Um ápice de tempo nenhum para se completar a gestação, uma nova vida. Tempo suficiente para moldar a perfeição.

Os futuros pais não se alimentam, não bebem, mal se mexem, nada. As energias que restam são para defrontarem as condições adversas. Reduzem as funções do corpo ao mínimo. São muitos, encostam-se uns aos outros para aprisionar o calor. E aí ficam, estáticos, aquecendo-se como podem. É neste espirito de grupo coeso que o conseguem. Sozinhos são nada.

Obedecendo a um acordo primordial gravado no código da sua espécie, todos os que formam este conjunto mudam alternadamente, ordeiramente, de posição. Os que estão mais expostos trocam com os que estão no núcleo, sucessivamente. Garantem o aquecimento para todos. Este conjunto de muitos forma um organismo múltiplo único, no funcionamento afinado de uma pequena sociedade.

A espera vai chegar ao fim, cumprindo-se o prazo genético estabelecido. Num dia como qualquer outro, mas marcado na sua agenda como dia de um nascimento, esperançoso desde os primeiros momentos alvos de um sol irradiante a reflectir faíscas de luz, a lembrar larvas de um vulcão, sobre o manto antigo – a história da Terra está disposta em camadas - de gelo, os pequenos filhos de seus pais tão lindos, os seres mais lindos, é sempre assim, nascem, indefesos pinguins, trôpegos, balbuciantes, os filhos são os seres mais perfeitos do mundo. Começa nesse momento inaugural, a descontar o tempo que resta, a vida não tem tempos mortos, uma vez o mecanismo em andamento, não há intervalos para descanso.

Um nascimento é uma alegria que verte lágrimas. A emoção desbragada, o sentimento, a comoção do sentimento a querer-se contido mas a estilhaçar no regaço arfante, a qualquer instante. As boas-vindas a um novo membro da comunidade, faltavas tu, há quanto te esperávamos sem saber que era a ti que esperávamos.

Uma sorte em milhões de milhões, a jogar em favor das possibilidades do jogo das sortes da vida. A conjugação complicada: intenções dos envolvidos, acções dos interessados, fenómenos a favorecer os acontecimentos improváveis ainda assim bem-vindos, probabilidades em jogo, conseguir vencer e vir, para dar de caras com o mundo. 

No deserto infernal, a mãe que já não se alimenta há muito tempo, a sentir no intimo o anúncio do limite das forças, não tem oportunidade para gozar essa felicidade familiar, não tem outra opção senão partir, repetindo o mesmo caminho, pisando desta vez ao contrário, rumando ao mar, fonte de alimento, fonte de vida.

Vai procurar o sustento, antes um agora três, tantos, uma família. Ela agora é a guardiã de outra alma, uma alma que habita um corpo novo construído dentro de si com cimentos seus. Estas mães partem sem garantias de regresso, sem outras alternativas senão irem, todas mães, se tiver que ser e tem partem, por eles., e no insucesso de um azar que lhes aconteça, morrem todos.

No interregno da ausência, um vazio a acrescentar ao vazio do local onde se vive esta irrealidade, o pai faz do seu corpo uma casa, o abrigo, protege o neonato, tão frágil. Não se lhe apague o lampejo da vida, que a mãe regresse, e se confirme ao pequerrucho que melhores expectativas continuam em cima da mesa das sortes.

Para o alimentar enquanto a mãe não volta, oxalá, o pai faz das suas entranhas vida, do fel doçura, muito pouco, mas é o que tem e pode, regurgita num esforço superior ao seu de regurgitar o quase inexistente, conseguindo um resto de nutrientes essenciais, nada mais para dar, tudo dado nos limites.

Continuam assim, a rotina da espera. A vida em intervalo, numa esperança que não é fé, é determinação, e aguentam os vendavais. São estóicos. A mãe vai conseguir, consegue sempre, o pai sobreviverá – mãe-heroína, pai-herói – dando razão à esperança, que acredita sempre na sobrevivência de um amanhã, personificado neste pequeno ser que esbraceja para vingar. É uma história que mesmo havendo tragédia só pode acabar bem.

Repetindo os relambórios do tempo, sempre os mesmos, desnovelando-se infinitamente, igual, a mãe conclui a peregrinação, o longo caminho que vem do mar, pela terceira vez, sempre a diminuírem as possibilidades de sucesso, mas a acontecer uma desgraça do acaso, ou do destino, não é por desistência, a acontecer é uma arbitrariedade, e a estas não se presta atenção, não se convençam em demasia.

Está quase. Nos últimos quilómetros começa a gritar num berreiro de pinguins, o mais alto que pode, contra os volumes sibilantes do vento que abafa todos os ruídos. Os gritos destas mães são agora mais poderosos do que os ventos, sobrepõem-se a eles, urram mais alto. Ela fá-lo com todas as contrariedades e desafios, tem uma força interior inabalável, a força de mãe.

Pai e filho, por sua vez animados por uma reunião de energias inqualificáveis, chamam por ela, reencaminham-se mutuamente. Um farol sonoro a indicar o rumo do bom porto. Na dificuldade colocada por uma visibilidade cinzenta e turva, quase sólida, eles acabam por se reencontrar na confusão de uma pequena multidão de seres iguais a gritarem muito.

Quando finalmente se veem e reúnem de novo, o primeiro gesto da mãe é o de alimentar o amante, no limite da vida. Olha depois para o filho que não sabe ainda o que está de importante a acontecer, naquele momento decisivo para a humanidade dos pinguins, ela expectante, comove-se. Verte uma lágrima que congelou imediatamente, ou deu a sensação disso, chorarão estes animais? Não se confirma, o que foi passou. Na realidade não interessa, não acrescenta, os livros não devem contar tudo. Está muitas vezes no que fica em aberto, na possibilidade de, o fluir do enredo dos livros. 
Deixam a germinar seguimentos, sentidos, coisas estranhas ou não, em ecos de pensamento na cabeça de quem os lê.

Quando acalmam os sentimentos, apaziguados pela ternura e pelo desvelo, mãe e pai baixam e encostam as suas cabeças, tão cansados, tão amantes, tão realizados. Visto ao longe, mas suficientemente perto para se ver, parece que desenham a figura de um coração. É um belo enquadramento. Ficam-se assim, amando-se muito.

Esta história é real, existe e cumpre-se todos os anos, há muito tempo. É a história das histórias de amor incondicional mais forte que se conhece ao cimo da terra e nos conhecimentos do universo: o dos Pinguins Imperadores no Pólo Sul do planeta azul.

Há outros animais que são igualmente exímios no amor. 

Alguns homens mimetizam essa pulsão ancestral, muitos são misóginos, simplesmente egoístas, ou absolutamente idiotas, mas os que amam e quando o fazem bem, diz-se que atingem uma felicidade intraduzível.

Prova-se aqui depois de muitos trabalhos, que existe o amor incondicional, mesmo que leve a discussões filosóficos e outras, sem desfechos definitivos.

Os pinguins Imperadores não se lembram de uma discussão, só conhecem Amor, por isso são felizes.




Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,