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O ARTISTA PERDEU A IDENTIDADE


Antes de inaugurar a exposição, ainda à porta e sem ter cortado a fita – inexistente, porque já não há fitas para cortar, nem quem segure a tesoura das fitas - o Secretário de Estado, fez uma pose a fingir-se de simpático com o artista, mas é óbvio que foi uma pose de grande maçada: o convívio com artistas mina a consciência, deve ser feito à distância, com máscara, para não se adoecer com o vírus da sensibilidade.

As poses é suposto mostrarem o lado mais fotogénico, que no caso deste Secretário é o lado direito – o esquerdo é habitado por uma verruga, que lhe desvanece a possibilidade de beleza numa irremediável desarmonia do rosto.

Estavam presentes os fotógrafos e as televisões, não porque uma exposição de pintura seja uma coisa importante, mas porque nesse dia tinha-se falado numa remodelação no governo, e este Secretário era dos substituíveis - preferem-nos de linha branca, baratos só que depois implodem mais cedo. Troca-se por um novo na loja dos chineses, sai em conta (são mais caros os carros, os motoristas, os assessores e os almoços pagos, do que os secretários nas lojas dos chineses).

O artista, justificando naturalmente a sua condição de inventor de abstractos, pessoa distraída em geral porque atarefada nas questões metafísicas das esferas - as coisas que importam - espantou-se com a presença em peso dos meios de comunicação.

Estranhou porque não percebeu na ingenuidade reconhecida aos artistas, que os microfones e as câmaras não estavam ali para o noticiar. Não fosse o Secretário ter comparecido ao acto com evidentes fumaraças a escapar pelos orifícios - processo revelador do fenómeno implosivo já em andamento - e os repórteres também eles de linha banca não teriam vindo em peso.

A arte é chata e não oferece croquetes. Só pede atenções.

Perante aquele aparato esmagador, ainda passou pela cabeça do artista - ao compor nos ombros o casaco que vestiu obrigado pela companheira que vincou as lapelas no ferro – que todo o seu esforço e suor tinha sido finalmente merecedor de um olhar.

Por uma qualquer e desconhecida razão, ao fim de quase uma eternidade – pelo menos uma quase vida inteira – os meios que poderiam divulgar o seu trabalho estavam ali, ao beijar da mão, para filtrarem a sua arte pelos olhos e fazerem a notícia, criarem as ondas de eco para a propagação pública.
 
Foi um pensamento efémero, caiu logo em si e recompôs-se.

Em todo o caso no momento da fotografia, pode-se afirmar que ele estava feliz.

Trinta anos a olhar para uma tela em branco, a indecisão de todos os inícios, as gestações difíceis das obras sempre incompletas, mancas da perfeição absoluta, a solidão da auto-crítica violenta, que arranca a pele e doí, todas as camadas de frustração acumuladas, têm finalmente um ponto final.

Cem exposições, sem querer ser rigoroso com os números, para ter uma figura do estado e a cobertura dos meios a baterem-lhe à porta!

É agora! Amanhã, mesmo que só tenham saído notas em rodapé, a vida muda. O reconhecimento e alguma bola autocolante verde, ajudam a pagar as tintas. Caríssimas!

Fosse o artista um sonhador e poderia em estado de excitação, ser levado a pensar já no antegozo deste sucesso,que no próximo ano lectivo, estaria muito mais desportivo - e despreocupado - na questão da sua colocação como professor, afinal a única e eternamente temporária fonte de rendimento.

Mas após a fotografia tudo foi rápido e definitivo, como já se esperava.

O Secretário entrou como saiu e os dos meios nem sequer entraram. O frisson não passou de um pequeno apontamento na linha da porta que demarca o fora e o dentro.

Dentro não havia salgados mas os amigos aguentaram – não foram pelo beberete.

Quando a vernissage estava a atingir o pico de audiência, o artista recebeu um telefonema, há testemunhas disso e do que se passou a seguir.

No meio da algazarra viu-se a gesticular, a arfar, a lançar para o éter sons inaudíveis devido aos níveis elevados de decibéis da sala.

Ainda não se disse que a exposição estava muito bem, mas já não se vai a tempo, a atenção vira-se agora para as reacções inesperadas do artista.
  
Depois da chamada ele trocou breves palavras com o galerista que franziu o sobrolho. Este, ainda com o sobrolho desarranjado, foi falar com a namorada espampanante que lhe indiciou o indicador direito pintado de preto numa proximidade demasiado perigosa do nariz do homem. À distância parecia estar a dizer-lhe: “Vês! Bem te avisei, arriscas tudo em nomes desconhecidos, e depois é o que acontece”.


Afastou-se indisposto deixando a namorada a reacender conversa com quem estava ao lado, um rapaz altíssimo com dedos dos pés enormíssimos a saírem como garras de uns chinelos. Esse rapaz vestia uns calções por cima de umas leggings e o cabelo espetado como se tivesse acabado de apanhar um susto. Mais do que um susto: uma assombração.

Nervosíssimo o dono do espaço começou a recolher os catálogos da exposição, e virou contra a parede um cartaz k-line com a fotografia e o nome do artista.

O pintor tinha ar de estar a asfixiar num cigarro desesperado. Sorvia aquela poluição toda como se não houvesse amanhã.

O seu irmão que de repente intuiu que algo estava a acontecer – as luzes interiores de alerta, vindas dos fundos das entranhas, inexplicáveis pela razão mas que os irmãos chegados possuem  – aproximou-se.

- Estamos fodidos. Perdemos a identidade.

- Como que perdemos a identidade? As finanças ainda só podem bloquear as contas do banco, que me tenha dado conta ainda não congelam os bilhetes de identidade.

- Deixa-te de graçolas, isto é muito mais grave do que tu imaginas.

- Isto o quê? Que ficaste com os cabelos magnetizados como aquele avatar que anda aí a desconjuntar-se todo das ancas? O que aconteceu!

- Não somos filhos do pai.

- Então? Se não somos filhos do pai ele não é nosso pai.

- Temos outro apelido.

- É pena, eu gostava do que tinha, mas não há-de ser agora, ao fim de cinquenta anos que eu vou deixar de ter apreço ao nosso pai que já não é o nosso pai. Habituei-me a ele, fico-me com este, não quero outro.

- Eu também não.

- Então está tudo resolvido, não se pensa mais nisso. Nem lhe vamos dizer nada, que ele se calhar nem sabe. Mas já agora porque me estás agora a dizer isso, aqui e nesta situação?

- É que acabo de o saber pela mãe. Deve ter tido um arrebatamento inadiável de consciência existencial, ou então aumentou na dose e está com alucinações, e acaba de telefonar a dizer que não podia morrer sem que soubéssemos que afinal somos filhos do Pardal.

- Do Pardal? É como te digo, esquece, já nos afeiçoámos ao nome do nosso falso pai,o Pardal já morreu, nunca o conhecemos, ficamos com o nome que temos e encerrada a questão.

- É que não estás a ver! Depois do telefonema fui dizer ao galerista, e ele não reagiu nada bem.

- Disse o quê?

- Disse que tinha andado este tempo todo a investir em mim, a construir o meu nome - que até é giro - e agora apareço com um diferente, ainda por cima quando me apresentou ao quase ministro e tudo.

- E tem razão, hoje que pela primeira vez conheci um meio ministro - débil é certo - mas ainda assim um quase ministro, e amanhã que com alguma sorte vai aparecer o meu nome num ou outro jornal, do dia para a noite deixo de ser peixe para passar a ser pássaro.

- Já não tenho tempo nesta vida para construir uma nova carreira com um nome diferente.

- E o que é que isso interessa: o teu nome não pode ser diferente do próprio?

-Pode, eu é que não consigo viver com uma vida dupla.

- A mãe amarfanhou-se, sabes que ela até os nossos nomes próprios troca. Pode ser que esteja no meio de um pesadelo, meio acordada. O avô contou-me um dia que ela em pequena era sonâmbula. Uma vez saiu de casa a meio da noite e foram apanhá-la no outro lado da rua com a almofada na mão.

- Pode ser que estejas certo.

- Sim é isso, esquece o assunto, vais ver que é desta, amanhã serás um artista reconhecido.

No dia seguinte não se pincelaram notícias de rodapé e a mãe despertou por volta do meio dia, sem saber em que dia estava. O pintor pegou nas aulas pelas oito e só as largou depois de preenchidos os relatórios burocráticos que preenchem a vida emocionante de um professor. O Galerista acordou tarde com a loura a ocupar todo o espaço da cama, a cheirar mal da boca.


O Secretário viajou para o interior profundo para uma sessão de esclarecimento sobre o orçamento de Estado e como intelectual que é, fez-se acompanhar de um dicionário de vernáculo para aligeirar os discursos e facilitar a vida – e o entendimento de coisas complexas – às gentes deste país.    

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