As crianças passavam
os dias na rua até que o chamamento estridente das criadas para o jantar, se
desenvencilhasse do bruá dos putos no
pátio, e fosse ouvido, com pena da brincadeira terminar.
Guelas, caricas com
a cara de jogadores famosos, pião, bola claro! Apanhada, cabra cega... as peças
do puzzle do dia a encadear os sonhos
da noite.
Tempos de mudança. Os
rapazes tinham mais liberdades que as raparigas, mas algumas começavam já a desnovelar uma vida confinada aos quartos e salas bafientas
por onde acirandavam as mães e outras antiguidades.
Tempos de convívios
incómodos, para elas que se aventuravam nos primeiros deslumbramentos fora do universo
bafiento, para eles cedência de espaço, galarós tímidos presumidos de à vontade.
Os géneros acabaram por se fundir no
grande pote da infância e quase todos recordam com nostalgia o tempo em que o
tempo parou.
O espaço do pátio
que então parecia enorme e hoje não tem pretensões de grandeza, partilhava-se
assim entre o feminino e o masculino . Os mais afoitos, enviavam de quando em vez uma bola
distraída à espera de contraditório. Umas recatavam-se em sorrisinhos de boca fechada, outras por atavismos a despontar, reduziam-nos a pó, naquela forma letal de olhar que só as mulheres conseguem quando querem dar um assunto
por terminado, seja ele qual for.
O pátio foi o
laboratório a céu aberto, tubo de ensaio do futuro.
A fanfarra a cavalo
da Guarda Republicana era o espectáculo da semana, ninguém faltava.
Os cavaleiros
músicos, nas suas fardas majestosas, ensaiavam cadências e sincronicidades no
vasto descampado de ervas daninhas que se espraiava à frente do prédio. Ao
fundo, apurando as vistas, via-se o rio já quase a ser mar. Havia
golfinhos.
Em bicos de pés os
miúdos ajeitavam os queixos no bordo do muro do pátio, e assistiam estáticos,
apatetados, à dança das belas montadas brancas.
A audiência só se
descompunha na risada, quando algum ginete menos experiente caia das enormes e
majestáticas bestas e levava consigo, aos trambolhões, tambores do tamanho de
uma roda de camião, que rolavam e saltavam e acabavam por embater noutro
cavalo, que histérico e assustado desembestava descompondo a compostura solene
da banda, e gerando caos.
Era uma catrefada de
miúdos de diferentes idades, alturas e feitios .
Miúdos felizes.
No prédio viviam
pequenos burgueses, burgueses com mais porte, e o rol de serventes, que também
eram fam ília
apesar dos mais presumidos fingirem que os tratavam mal, só para armar e manter
as conveniências do tempo.
As mercearias –
todas as ruas tinham a sua - enviavam os marçanos a casa dos fregueses com os bens do dia, e estes, recém
chegados da parvalheira, ou já mais espigados, aproveitavam para catrapiscar as
sopeiras; Os leiteiros deixavam o leite em garrafas de vidro transparente à porta de casa;
a água fresca das fontes de Caneças era vendida por mulheres que a traziam à
cabeça em bilhas de barro; os amoladores, em dias certos da semana, percorriam
as ruas anunciando-se ao toque melódico de gaitas de beiços e aparavam as facas
e tesouras, numa corrente-lixa engenhosamente colocada na corrente da
bicicleta, que ao pedalarem afiava com primor os utensílios da cozinha.
Não foi assim há
tanto tempo.
O pátio era também o recreio da escola primária
da D. Celeste, escola de meninas. Muitas e ruidosas. A D. Celeste era boa pessoa,
tinha uma filha obesa e um gato. Dada a sua condição avantajada a Elvirinha não saia de
casa, vindo a dar uma leitora obsessiva.
Uma fila de
casinhotas dispunha-se longitudinalmente a todo o comprimento do pátio, casas de arrumos e depósito
de objectos abandonados pelos donos nessa espécie de cemitérios do passado que
são os sótãos e as arrecadações.
Vinte no total, quatro para cinco metros quadrados, com uma
porta de madeira e um buraco com um diâmetro aproximado de 20 centímetros, para
arejar.
Os residentes após
atenta observação de campo, concluíram que as meninas necessitavam de mais
distração na hora dos recreios. Ou isso seria a desculpa para se meterem com
elas, primeiros ensaios na atração do desconhecido que leva a assumir as consequências do risco de se conhecer o outro.
O Salvador, menino Nestlé, loiro de olhos claros e pele
branca imaculada tinha uma magnífica
mala gira-discos portátil que funcionava com pilhas.
Abria-se a tampa,
colocava-se o disco de 33 ou 45 rpm, começava a rodar, punha-se o braço com a
agulha sobre a superfície do vinil e a música escapulia-se por essa mesmíssima
tampa que também era um alto-falante.
Último grito da
modernidade.
O pai do Joaquim
trabalhava numa empresa de música, o do Salvador era intelectual – mas também
trabalhava . À noite disfrutava da companhia dos discos, enquanto lia um dos
livros da sua biblioteca-sala e degustava em baforadas lentas um cachimbo Porsche ultra-moderno, com uma fornalha
de aço escovado.
Era tanto livro que
se ficava com um torcicolo de estar tanto tempo de cabeça ao lado a ler
títulos. Sempre que o Joaquim entrava na sala, todos os dias, vinha-lhe
sabe-se lá de onde, um impulso incontrolável de tocar, escolher um de tantos e folhear, sempre no sobressalto que alguém da casa reprimisse esse namorico não
autorizado pelos livros.
Assim, na
clandestinidade, ficou refém deles para o resto da vida. Aquela biblioteca foi o
seu primeiro cárcere.
O Salvador e o
Joaquim possuíam uma coleção invejável de discos com todas as novidades e outras coisas mais
entediantes, tipo música clássica e jazz, que eram um aborrecimento danado.
Nesses nem tocavam.
Se as raparigas
precisavam de se animar mais, ninguém naquele prédio tinha maiores credenciais
para as satisfazer do que eles.
Numa assembleia magna
a dois, com assistência sem direito a voto dos irmãos mais novos, decidiram
instalar uma rádio local com sede na casinhota nº 10, a do Joaquim que estava
mais vazia.
Pioneiros das rádio
privadas locais!
O estudo da
implementação foi aprofundado e sopesado com opiniões e palpites dos outros
meninos, a quem não se deu crédito, porque só eles estavam à altura de entender
e dominar as novas tecnologias e sabiam do que se estava a falar.
Haviam no entanto, pequenos
problemas técnicos por resolver tendo-se decidido pedir conselho ao Joaozinho, rapaz que vá-se lá saber porquê
tinha criado à sua volta uma aura de sobredotado, isto porque não saia de casa
para brincar, e os meninos que não saiam de casa eram vistos como prodígios em
potência de qualquer coisa, ou então estavam tísicos.
Ele não saia porque era o filho da porteira, e os pais gente humilde, crente a Deus e ao Senhor
que governava com pulso os seus súbditos, protegiam a cria do enxovalho dos fidalgos.
Lá mais para a frente o rapaz chegou a
doutor médico e alguns “aristocratas”, continuaram no desemprego desde o dia em
que se olharam pela primeira vez ao espelho. É um jogo que se desenrola assim, com as regras sempre a mudarem e os desfechos imprevisíveis.
Foi bem pensado
pedir-se um parecer técnico, pois aproveitou-se para encher os bolsos de peças
de Lego em falta no stock e mais dois
carrinhos da Matchbox, que estavam em
defícite no espólio.
Estas incursões eram
frequentes pelo que já havia uma táctica afinada com bons resultados: o
joaozinho ansioso por ter companhia para brincar expunha na mesa da cozinha o
material de construção, que dava para erguer uma cidade inteira em miniatura.
O António distraia-o
ajudando a erigir um estádio de futebol - obra difícil - e o sócio, sempre na
retaguarda, depois de assinalar as faltas de material e controlar a mãe
desconfiada, no momento oportuno, quando os dois estavam emaranhados a pôr de
pé uma bancada que apresentava problemas de sustentação e a progenitora a mexer o arroz
de tomate para não queimar, carregava os
contentores laterais das calças com os Legos e calcava para não dar nas vistas.
Nesse dia sairam com
a mercadoria, e ideias de gabarito para resolver o fenómeno da propagação do som, coisa da física acústica que os preocupava.
O Joaozinho nunca na vida se queixou abertamente dessas perdas de material de construção, o que sossegou a consciência dos infractores.
A montagem do estúdio fez-se portanto em bom ritmo.
A montagem do estúdio fez-se portanto em bom ritmo.
O pai do Joaquim
cedeu um altifalante que encaixava no buraco negro da casinhota, com uma
ligação sofisticada dos fios à mala cantante. Conseguiu-se ainda um microfone
para emissão intervalada dos noticiários e demais temas de interesse local.
Ensaiou-se o sistema
num fim de semana em que os irmãos e outros subalternos em idade, foram
coagidos a fingirem de meninas em hora de recreio no pátio. Alinhou-se nesses ensaios - não é para
gabarolice - a primeira playlist de
qualidade da história da rádio regional.
Georges Moustaki,
Chico Buarque, um cheirinho de Fanhais, Cat Stevens, e um que outro hit dos festivais da canção. música eclética para todos os gostos.
O organograma da
Estação era como se explica:
A Direcção Geral e a
Presidência do Conselho de Administração estava nas mãos do António, por ser o
dono da aparelhagem . O Joaquim era Administrador Delegado com assento no
Conselho.
Como empregados:
O António que punha
a música e não deixava ninguém mexer na aparelhagem, e o Delegado como locutor
de serviço.
A inauguração oficial
aconteceu numa segunda feira. Fazia uma Primavera das boas, daquelas em que o
cheiro do ar deixa memórias, e o calor vai para quente.
A escola não tinha campainhas, pelo que era mais ou menos por intuição que se
adivinhava o tempo do recreio.
Elas vieram em correria para o pátio, barulhentas e buliçosas como
todas as crianças.
Entrou em cena o Stevens, para dar cabo delas logo à
primeira.
Como disse o
escritor que tudo disse o que havia a dizer que depois dele os outros
ficaram temerosos de tentar mais ajuntamentos de palavras: elas estranharam a
música, segredaram-se porque estavam inseguras e de seguida gostaram!
Sendo locutor e como
só fazia separadores e noticiário, sobrava tempo e enquanto o António limpava
discos, punha discos, tirava discos, o Quim ia pregando o olho numa nesga do
buraco negro, para auscultar a audiência e as suas reacções.
Estudo das tendências
do consumidor, também nisso inovadores.
O objectivo era
hipnotizá-las, trazê-las ao estúdio, e depois cá para fora, gabarem-se de galãs e
famosos, no ensaio precoce dessas inseguranças e estimas pessoais que alimentam e veem a causar danos mais tarde.
A rádio foi um
sucesso que ultrapassou toda a expectativa. As meninas quando perderam a
timidez inicial começaram a passar por baixo da porta bilhetinhos dobrados,com
discos pedidos, as mães vieram conhecer
o fenómeno e a D. Celeste, em pessoa, esteve no estúdio com honra de entrevista
tecendo louvores ao trabalho e considerando-o de interesse público.
Durante esse período,
entre a Páscoa e as férias grandes do Verão,
aumentaram os shares, diversificaram a programação, agora
com rubricas para os irmãos e música dengosa para as criadas, que nos breves
intervalos a seguir às refeições, depois da louça lavada, encostavam os seios
fartos nos parapeitos das janelas da cozinha e deixavam-se a sonhar com os
magalas do Regimento de Lanceiros, a sua saída dominical, as aproximações e recuos
das mãos nos bancos de jardim, tudo isto no embalo dos sons maviosos que
imanavam da casinhota nº10.
Tudo corria bem, até
que um desprezível mal entendido, arruinou o sucesso desse empreendedorismo e
quiçá uma carreira de futuro.
Não se pense que
todas as meninas da escola eram umas santinhas, de não partirem sequer um pires que estivesse à mão. Recatadas eram, mas uma que outra, pela surra, não perdia a
oportunidade de experiências arrojadas.
Deu-se pois o
infortúnio da Carolina, uma loira angelical, que se arriscava a usar a saia um
pouco mais que acima do joelho, ter sido convidada pelos donos da Estação a uma
visita às instalações, com direito a explicação detalhada do funcionamento
complexo de uma emissora de rádio.
Os ânimos
exaltaram-se, o ambiente pôs-se agradável e a pequena, imbuída na missão da
Eva, levantou a saia e mostrou umas gloriosas cuecas de algodão em tons de
rosa. Não havendo testemunhas imparciais, é difícil afirmar que esse gesto foi
propositado e provocador. Também não se consegue provar, que na realidade esse
acto apanhou desprevenidos os radialistas, que ficaram sem
reacção.
Foram no entanto as
primeiras cuecas de mulher, ao vivo, das suas vidas e uma experiência destas não é fácil de esquecer.
Se existe felicidade
suprema, aquele primeiro episódio de sensualidade, fica no albúm de memórias do
belo, em posição de destaque.
Tudo se resumiu a
nada mais que isso.
Uma semana depois os
Directores foram chamados ao gabinete da Directora, onde se encontrava sentado
numa posição demasiado hirta para ser confortável, um homem de bigode fino e
cabelo rigorosamente acachapado pela brilhantina, imitação dos heróis do cinema
mudo.
Na continuação de um
silêncio aterrador e propositado e sem que o personagem abrisse a boca, nem
sequer levantar o olhar, a Professora ditou o veredicto: os
meninos tinham andado a levantar da saia da filha do senhor Inspector, fizeram
várias tentativas de tocar nas suas pernas
virgens, iriam ser
severamente castigados. Tinha que se limpar essa nódoa incómoda na honra da
púbere, pequena andorinha inocente que foi obrigada depois de trancada pelos
meliantes na casota nº 10, a actos indecorosos. Os pais dos meninos receberiam
a notificação do sucedido, em viva voz e nesse mesmo dia, a Elvirinha iria
falar com as suas mães.
Como punição, um
jejum prolongado de idas ao pátio, sem contestação, não vão os pais terem
que explicar àquele senhor como os seus filhos passam lixo revolucionário,
e onde arranjaram aquelas músicas perturbadoras dos espíritos e da ordem.
Eles não tinham
feito nada de mal. Tinham tido uma visão deslumbrante do céu, ficaram aflitos
sem saber como reagir, e simplesmente olharam, um com um disco de vinil na mão,
o outro sem saber o que fazer ao microfone.
O mundo dos adultos
é injusto.
As meninas da D. Celeste perderam uma
excelente rádio local que as entretinha enquanto saltavam ao elástico e jogavam
a cabra-cega, mas a bola continuou a ir parar ao seio delas na expectativa de uma devolução com um sorriso.
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