A escuridão é quase absoluta num túnel feito pela
mão do homem, escavado nas entranhas da terra, terra adentro, na direção das
profundezas.
Não se veria praticamente nada não fosse um coto
alimentado por uma lamparina de azeite presa no capacete, a debitar uma luz
mortiça.
Uma multidão de homens escuros, sem rosto, sem um
som de voz a sobressair no ruído insustentável das picaretas, formigas que
escavam e transportam incessantemente toneladas de carvão: o ouro que alimenta
as feéricas e estonteantes máquinas que rolam sobre carris, e que vão ligar de
ponta a ponta o mais grandioso Império do Mundo, de Ocidente a Oriente, de
S.Petersburgo a Vladivostoque.
Esta gente alimenta eternamente os seus czares, e
dobra as costas massacradas em tormentos, no bater das botas de todos os
cossacos.
Vlad, nunca vê a luz do dia, consome-se nas trevas
de uma gruta, mineiro à força, escravo do Grande Senhor da Rússia. Cá fora –
não há cá fora nessa terra maior do mundo - todos são igualmente mineiros, na
penumbra duma imensidão de cinzento.
O silêncio dos homens é imposto pelo ruído
ensurdecedor das pás e das picaretas, das explosões que abrem novos túneis e
matam homens -sem conta que não contam - dos vagões que trazem o carvão à
superfície, comboios de fantasmas.
Porque vive no jejum de palavras, Vlad alimenta a
utopia de uma conversa de amor com Liçá, um sonho-amor irreal, desabafos meio
alucinados no mundo de todas as durezas.
Admira a graciosidade e a sua ausência de peso,
quando imagina as suas correrias sem norte e sem rumo, pelos bosques
intermináveis das estepes russas.
A sua Liçá capta todos os sons do mundo, e põe-nos
na cabeça de Vlad para que este se absorva das cores que não vê, para que se
inebrie com os odores húmidos e puros da terra, para que sinta uma vida real
que não existe.
Através dela, o mineiro-escravo ensaia entender, e
gostar, de um mundo que nunca irá conhecer.
Nunca tocou em Liçá, nem sabe se ela tem vida
própria para além dos desvarios do seu pensamento enquanto fere as entranhas da
terra , mas gostaria de sentir o altamente provável toque sedoso do seu pelo, ensaiar
uma tentativa de abraço, sentir o calor da proximidade de outro corpo.
Liçá é a sua ideia de liberdade, a sua cúmplice, a
amante que nunca chegou a conhecer a não ser por uma fotografia de uma jovem
mulher russa, resgatada do bolso de um companheiro morto por falta de ares,
numa galeria que desabou nessa maldita mina de carvão.
Liçá será Lisa? Os nomes dos animais que flanam na
sua cabeça, confudem-se com nomes de pessoas.
Lisa é uma raposa indomável e selvagem que saltita
sem saber da existência dos czares , nas estepes geladas dos Urais, não sabe de
minas nem comboios, e também não sabe de quem a possa sonhar.
Por onde
cirandeia a Lisa?
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