Todos voltaram às suas coisas, sabe-se de experiência vivida que
quando se vivem momentos de grande intensidade, findos, são geradas condições
imediatas, vindas sabe-se lá de onde, que repõem a harmonia. São o carro
vassoura, o último que segue o pelotão, que recolhe os cacos, os estragos, que varre
e limpa, para que tudo seja rapidamente esquecido, apagado, condição
imprescindível para se seguir em frente. E foi o que todos fizeram:
reintegraram os acontecimentos recentes, deixaram assentar poeiras, e voltaram
a dar-se em íntimos quotidianos com a suas vidas privadas.
Todos não. O Juiz não esqueceu, nem o pintor, nem o filho deste.
Outros terá havido que não mas não se manifestaram como estes.
O Juiz fez o mais difícil julgamento da sua longa carreira,
levado ao limite da responsabilidade, como homem e como garante do Direito. Julgar
Deus, deixa marcas que não cicatrizam. Mesmo assim preparou-se o melhor que
pode, leu e releu as leis e os grossos calhamaços onde elas estão escritas.
É certo que as leis dos homens não são as leis de Deus. No
entanto, foi as que tinha à mão e as que usou no uso da presidência do
colectivo, tentou e foi equânime e justo.
Cumpriu com a sua consciência. Num futuro, quando chegar a sua
vez, não será por esse episódio que Deus lhe negará a entrada pela porta
principal do paraíso, a menos que tenha ficado ressentido, mas esse é um
sentimento humano.
Em nenhum momento deste delicado processo, sentiu a soberba a tomar
conta de si, inchando de vaidade pela falsa sensação de ser o Juíz do Criador.
Acima de todos os homens, deles e de Deus, pecadilho que acontece – raramente
mas acontece – nos que decidem os destinos traçados nas barras dos tribunais.
Estava de bem consigo, tinha cumprido a sua função, tentar junto
de Deus a resposta às dúvidas das pessoas, legítimas, adiadas desde o primeiro
dia, já que na excepção dos místicos e dos beneficiários de milagres, Ele nunca
mais foi avistado, não tendo os homens nenhuma oportunidade de fazer essas
perguntas fundamentais para a pacificação dos tormentos de incompletude e
mortalidade.
No final ficou tudo na mesma, não se conseguiram respostas
definitivas, a conversa de Deus foi ou o peso do silêncio a sentir-se na sua
maior amplitude, ou uma conversa desconexa, inconclusiva. Ficaram as questões por
solucionar, não será tão cedo uma nova oportunidade para um encontro.
Não foi culpa sua, deu o melhor. Deus não responde perante os
homens, a menos que…
Num atelier mais ou
menos obscuro num bairro pouco considerado da cidade, de tal maneira que a sua
toponímia são números e não nomes (rua 1, rua 2,rua 3…),
bairro de pessoas desabastadas, mas de bem, que vão e vêm para
os seus trabalhos todos os dias de uma vida inteira, para conseguirem meia
dúzia de pechisbeques e pagarem os estudos dos filhos (que venham a senhores
doutores e quebrem o enguiço da mediocridade dos pais, e das suas gerações até
à quinta contando para trás – que dizem ser o número de gerações que leva a
libertação de um pobre da pobreza).
Nesse bairro, um artista excêntrico e inconformado dedicou-se num
comportamento adicto e compulsivo - desde que a história começou e como se não
houvesse outro tema -, a pintar os rostos dos descuidados de deus – pintura
cortante como um gume de um sabre de samurai.
Deu-lhe para isso e teimou que daria o seu trabalho por
terminado, a última pincelada, quando tivesse resolvido esse assunto no íntimo
da sua consciência de artista excêntrico, inconformado com os desequilíbrios e
as hierarquias injustas nas sociedades dos homens. Ele teria tendências anarquistas,
não fosse essa uma utopia praticamente extinta. Agora, todos preferem ser “Nova
Era”, que é um género de anarquia ecológica, mas na mesma caótica.
Para além de pintor ele não gostava que uns estivessem por cima,
outros por baixo, uns serem mais, outros serem menos. Haver um operador de marionetas, presumido de
lhes dar vida e não emaranhar nenhum fio, nas intermináveis representações que
executa no grande palco, era algo que o indispunha, porque ele é um
livre-pensador. Ateu mas espiritualista.
O Artista, por uma razão sua do foro filosófico interior –
alinhamento pessoal dos eixos do entendimento das coisas do universo -,
resolveu-se até pôr um ponto final na sua inconformidade, a pintar as caveiras
que dão estrutura a esses rostos, dos descuidados de Deus. Trabalho imenso
porque estas criaturas são muitas e revestem muitas formas e feitios.
Houve outra razão. Ser o pai de um dos meninos que naquele dia visitou
o jardim zoológico, e juntamente com os outros meninos, os humilhou,
enxovalhou, aos símios. O seu filho foi dos que mais bateu na proteção de vidro
grosso que os separava, dos que mais macacadas fez. E esse comportamento foi
referido pela professora, ao final do dia, quando o pai, o pintor, o foi buscar
à porta da escola.
Ficou incomodado com esse acontecimento e a velha desculpa que
às crianças tudo se desculpa (são ingénuas, puras, sem maldade intrínseca) não
a aceitava. Nesse dia, com o filho pela mão e nos dias seguintes, teve esse mal-estar,
e querendo encontrar uma resposta que o tranquilizasse, deu-se a pintar
caveiras.
Banais, qualquer um diria serem humanas e podia-se perguntar o
que leva um pintor, a pintar caveiras, tema complicado de expor numa parede de
sala de estar, de estar onde for que seja, num apartamento privado, num
consultório de dentista, mesmo num gabinete de um director de um banco. Coisa
macabra.
Ele pinta-as, é uma conversa sua, privada, e se pinta para que
seja visto, no seu caso nada disso faz sentido, já que ele nem sequer pensou
que alguém o quisesse ver, além de um círculo restricto de pessoas próximas,
que lhe reconhecem a genialidade sem insistirem muito no assunto, não o querem perturbar.
É um pintor que pinta para si, e assim deviam ser todos: os que
escrevem e os que compõem música, os que constroem lindos origami. E se as artes fossem assim e não cedessem a democracias,
seriam respeitadas, punham o público na ordem certa, e não havia necessidade de
deuses para entreter-lhes a cabeça. A arte seria como que a religião universal,
sem orações, nem iconografias, nem vales-crédito-pontos acumulados para uma
morada no além.
Só deslumbramento e momentos de felicidade.
Perguntar-se-á porque o pintor se deu a pintar as caveiras dos
descuidados de Deus. Porque como em tudo, tudo tem duas faces, o dentro e o
fora, e só se pode conhecer bem uma coisa quando se conhece a sua ideia geral,
ideia esta só apreensível vendo-se o fora e o dentro.
Os rostos, o exterior desses rostos, bem os vimos, transmitiam
os seus estados de espírito (palavra arriscada), exaltados porque Deus os
descurou. Mas uma boa perspectiva, tem-se na posse de todos os seus ângulos. Daí
ser necessário para completar a informação, ele pintar o dentro, vindo a sua
galeria a transformar-se numa morgue de caras iradas e cabeças vazadas de
revestimento, penduradas nas paredes.
Saltam à vista as crateras onde ontem existiram olhos, e hoje o
nada: as órbitas vazias de uma caveira são a marca da identidade mais
arrepiante, porque é nos olhos que está a vida, e quando vazadas deixaram de
ser identidade.
Pinta caveiras neste entretanto do futuro, um interregno, para
se libertar – ou não – da ideia de Deus. O seu modo de negação e luto. Depois
disso, depois de limpar completamente o preto, virá um tempo novo, uma
renascença, a folia, o início de uma nova era de alegria.
Falta falar da criança. Esta traumatizou, porque apesar de
ingénua e pura e sem maldade e sem espírito crítico desenvolvido, a dado
momento, no processo de macaquear os macacos, de bater no vidro e fazer carantonhas,
captou fugazmente o olhar desiludido e triste de um pequeno macaco, como ele, a
esconder-se assustado, na protecção dos braços da sua mãe.
Nesse instante não o sabendo dizer dessa forma, o rapaz percebeu
humanidade. Deixou de pontapear o vidro, virou costas e sentou-se, mais
afastado da cena.
Ficou ali até terminar a visita da escola e quando a professora
à sua frente referiu o episódio ao pai, ele teve pena que ele tivesse ficado desanimado
com o seu comportamento, porque percebeu isso, tinha sensibilidade.
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