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TRADIÇÃO E CULTURA - FESTAS DE VERÃO






Nas ruas, grossas traves de madeira fazendo de muros, protegem as bestas das pessoas. Separam mirones dos “artistas”. Dá-se início à representação de um espectáculo antigo, um rito, uma tradição de cultura.
Largam-se as bestas para gáudio do povo. São touros bravos. Esperam-se cornadas boas, piruetas e volteios, e sangue, o suficiente, o indispensável para colorir, e justificar, a tragicomédia que se representa todos anos. Festas religiosas estas, com procissão e velas e muita fé.
As pessoas gostam de serem cilindradas! São às centenas os homens a correr à frente dos touros, uns a tentar escapar, outros a afrontar, a maioria só a ver. De ver se enche o olho e leva-se experiência para contar entre os amigos, inventando-se talvez alguma coragem, que não existiu, a não ser que seja coragem ter uma garrafa de cerveja na mão e estar encostado ao tal do muro, a ver quiçá já com os olhos enublados, a passagem dos cortejos.
A largada vai terá o seu auge na praça de touros, de portas abertas com a arena livre por onde vão entrar os animais e os homens, a cumprirem remates de faenas finais, com saídas em ombros ou nas mãos dos que transportam os feridos e os ébrios para a enfermaria.  Com todos os casos, será nesse espaço a apoteose, o grande final.
Animado pelo palheto a que se juntou um medronho que o Albano ofereceu, o Mário abre o cortejo, fanfarrão, com as mãos à ilharga, logo abaixo da linha da jaqueta. Pé ante pé, avança em treinos de aquecimento para a incitação do touro. Ensaios de virilidade, antigos rituais de acasalamento, onde o homem enfrentando o dragão que expele fogo e tem mau carácter, vencendo a batalha do fraco contra o forte, conquista os redutos finais,  está ali pela sua dama, que agastada pela batalha sangrenta do seu amado, repousa agora a cabeça no ombro do herói, o futuro pai dos seus futuros filhos e de uma vida sonhada cor-de-rosa.
Uma amálgama de ruídos adensa as ruas. O som desconexo das bandas filarmónicas, já na fase em que os maestros atiram as batutas ao ar e os músicos apagam as sedes nos cones das suas cornetas a fazerem a vez de copos, mistura-se com a vozaria, em incentivos à coragem, e as exclamações, com o som suspenso, de quem antevê tragédias.
Embriagados de álcool e adrenalinas das hormonas, os participantes incentivam-se entre si, correndo desalmados na frente dos animais que assustados com a multidão investem de cabeça perdida.
O Mário começou a tarde com ares de gingão.
Situou-se junto aos curros, afrontou os bois ainda ofuscados pela luz, e correu bastante, aguentando alguns aconchegos nas nádegas até chegar à praça. Muitos companheiros ficaram pelo caminho, uns só com um sapato, as calças rotas a verem-se as bragas, as camisas vomitadas de medos e excitações, a coragem de rastos no chão.
 Felizmente os animais não causaram grandes estragos. Na contabilidade somaram-se pouco mais de meia dúzia de braços e mãos partidos, escoriações, algumas mais profundas, muita nódoa negra e alguns maxilares desprovidos de moradores.
A largada correu tão bem que ainda deu tempo para uma ginja pelo caminho, incentivos calorosos, alguns piropos e como troféu, um xaile arrebatado apaixonadamente a uma admiradora ocasional, cujo rosto bonito ou feio, só ficou na memória visual. Na praça se verá como as coisas vão correr.
Era zurdo,
um dos touros da tarde, deixado momentaneamente em paz e cansado daquela palhaçada, olhou para o idiota que se aproximava com os pés em pontas, armado em maricas galifão, como se fosse uma bailarina de can-can com pila, a ensaiar movimentos patéticos com um pano às cores.
Talvez não fosse para ele, pensou o animal.
Era zurdo, nascido e até morrer com um corno maior que o outro. Em pequeno os parceiros de pasto diminuíram-no.
O desprezo demonstrado pelas vacas – fez-se adulto sem um amor feminino – deu-lhe um carácter violento e imprevisível.
Em criança, teve os sonhos e as ilusões de todos os touros: morrer em glória numa praça conceituada. Num Campo Pequeno, quem sabe até Las Ventas. Mas a fama estava-lhe vedada pela deformidade córnea. Não passaria de um actor secundário, de um espectáculo ambulante, numa terreola sem nome. A sua existência resurmir-se-ía à inglória de uma derradeira corrida ao longo de um caminho com um chão esquisito, sempre a escorregar, rodeado por uma multidão de imbecis a porem-se a jeito.
Explicadas as razões da fragilidade psicológica que ditaram o seu temperamento instável, percebe-se e aceita-se que quando devia cornear não o fazia, e quando era para estar sossegado, arremetia o corno bom em riste, com uma violência extrema, dando ares de um rinoceronte africano em vez de um touro criado nas planícies ribatejanas.
O Mário entendido nas lides,
de muito trabalho empírico e conversas sobre o tema nas tertúlias de aficionados, compreendeu o animal e começou bem.
Iniciou o primeiro e único tércio, com uma verónica, um lance básico de capote. 
A imagem de Verónica segurando em suas mãos o pano em que ficou impresso o rosto de Jesus Cristo, deu o nome a este lance, fundamental no toureio de capote. É o passe mais frequente na recepção do toiro. O toureiro, com o capote seguro com as duas mãos cita o animal adiantando o capote e a perna correspondente ao lado da viagem. Quando o animal investe, o capote acompanha a sua saída sem lhe tocar, fazendo o artista uma rotação da cintura e do tronco.
Seguiram-se um par de chiquelinas, que encaixaram bem, e o nosso homem ganhou-se de confianças.
A chicuelina foi uma invenção do toureiro Chicuelo, de frente ao touro e pela frente, rematando o passe como uma navarra. Na chicuelina original os braços estão à altura do peito, mas alguns toureiros executam a sorte baixando-os. A chicuelina é tanto mais emocionante quanto mais cingida; o toiro quase que roça a cintura do toureiro, levando o público ao apogeu da excitação.
Com o excesso de confiança perde-se o tino. Totalmente eufórico, Mário inicia a segunda parte da actuação. O tudo e o nada. O tudo a glória, o nada a humilhação.
Ensaiou um ki-ki-ri-ki em honra a Gallito, e sendo esta uma sorte pouco comum, a sair bem, punha a praça a seus pés. Confiante ensaia o remate final.
 “El Ki-ki-ri-ki es como un ayudado, pero el torero debe llevar los codos a la altura de la cintura. Cogiendo la muleta con la mano izquierda y la espada en la derecha, retira la muleta tan pronto como el toro intenta cogerla, para colocársela delante del otro ojo.
El nombre se le atribuye a Alejandro Pérez Lugín, Don Pío, que, al vérsele hacer una tarde a “Gallito, no dudó en llamarle así, bien por venir de quien venía, “Gallito”, bien por la postura del torero, con su lento giro de brazos, que asemejaba al de un gallo”. Explicação graciosamente dada por um entendido, que já não se sabe quem foi, mas era espanhol e estava presente nas festas.
No ponto em que está a narração histórica deste dia, não resta a mais pequena dúvida que foram os gnomos, os duendes e o universo de criaturas que passam a vida a fazer diabruras, infernizando a vidas dos mortais, os responsáveis pela maldade do seu desfecho. Não podia ser de outra forma
Inchado de si mesmo, envaidecido com os aplausos do público, com a peitaça a dar cabo dos botões da camisa, Mário decide armar-se em toureiro anão, e ajoelhado cita o animal.
-Eh  touro lindo! – cita.
Este finge que não ouve.
-Ah touro! Ah touro!- insiste, aproximando-se de terrenos perigosos, na linha do não retorno, onde inevitavelmente alguma coisa definitiva e cómica ou trágica tinha que acontecer.
 O zordo está mais que farto. Cansado de correr e ser incomodado; cansado de distribuir mimos; cansado porque tinha saudade do pasto e da vida simples no campo, sem outras emoções, que os sabores da erva fresca; nostálgico de uma cobrição de vez em quando, um prazer diferente do comer mas quase tão bom.
Ele não queria estar ali.
Mesmo assim, aguentou o que pode as provocações do anão, mas este insistia em acenar com o tal pano às cores e florzinhas amaricadas.
Continuou a fingir que não era nada com ele, não encontrava razões para o cornear. Mas o sacana do baixote era mesmo parvo e ele teve de fazer o favor de lhe direcionar o seu quase unicórnio.
Atingiu em pleno a nádega esquerda do aprendiz de toureiro  penetrando vários centímetros carne adentro. Naquele momento dramático duas minúsculas ervilhas, tomaram refúgio no canto mais recôndito das trusses de alguém que conhecemos.
O Mário saiu inconsciente e ferido, no cu e no orgulho másculo, a sua virilidade posta em ridículo em frente da multidão.
A glória efémera transformada em vexame. Tudo é transitório.
Acordou na enfermaria, com um copo de bagaço pelas goelas abaixo. Desnorteado e ofegante, por alguma gota ter seguido o canal errado, começou por distinguir sombras, que a pouco se tornaram nítidas. Os amigos rodeavam a marquesa, onde jazia, dorido por dentro e por fora, e levaram-no abatido e de ombros descaídos para o barco.
 Acabou-se a festa, para o ano há mais, ou talvez não.
O regresso foi sorumbático. O cansaço das emoções e do corpo unem-se para se trazerem um ao outro para casa. O regresso é a antecipação da ressaca do próximo dia.
De volta a Lisboa, reina a calma: uns fumam olhando distraidamente para lado nenhum enquanto o arrais, mantem a embarcação no rumo. Para ele não há distrações. O Mário geme para dentro, pela dor e pela derrota. Aquela posição de rabo para o ar, fere-lhe mais o orgulho do que a ferida profunda.

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