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Mensagens

Era a poliomielite

José andava paraliticamente coxo. Doença antiga, de criança. E tinha os dentes encavalitados. Os que recebem as pessoas com sorrisos. Por isso sorria pouco e falava com a boca entreaberta para quem observa, e meio-fechada, na sua avaliação e vista sob a sua perspectiva. José era o único menino do prédio que não ia para o pátio das traseiras brincar com os outros meninos. Talvez por ter esse andar bamboleante, ou por não poder emitir uma opinião sem que um oceano de perdigotos se soltasse rebelde, da sua boca que não tinha a culpa. Um azar nunca vem só. A ele tocaram-lhe pelo menos dois, o que não foi justo, mas enfim os homens não se devem meter nas coisas dos deuses nem emitir opiniões sobre assuntos e decisões celestiais. Foi uma pena que nunca tivesse brincado connosco. Fizemo-nos homens e uma barreira a separar-nos, nunca ganhámos intimidade. Passava os dias empoleirado no beiral da sua marquise que dava para o pátio, a ver-nos brincar. Como não podíamos usufruir da sua compa

A MÁQUINA DE TECLAR PENSAMENTOS

Temos em nós uma máquina que tecla os pensamentos. Como se fosse uma máquina de escrever, que não é mecânica nem um objecto. É uma máquina biológica, muito mais complexa, de tal forma que ainda não se sabe como ela tecla os pensamentos. Fruto da sua livre vontade, ou de uma intenção pessoal, esta máquina que estará pousada numa secretária dentro da nossa cabeça, não tem um segundo de descanso. Desde que se abriu o escritório com o iniciar de uma nova vida, ela, formiguinha incansável, tecla e tecla dia e noite, produzindo um número inatingível de palavras em sequências de frases, que dariam numa existência – o tempo que o escritório está a laborar – para dar várias voltas ao mundo, ou mesmo, estendidas em linha direita e recta, ou mesmo chegar à lua. A Máquina de teclar pensamentos produz ideias profundas e complexas, mas também tecla asneiras e impropérios. Sendo humana, tem muita tendência para o erro. Por vezes também encrava e fica a teclar na mesma tecla provocando grand

É UM SUPONHAMOS

  Uma vida a ver passar. Dias a seguir a noites, pessoas, meios de locomoção, dinheiro pelas mãos, oportunidades, sonhos, ilusões, dissabores. A ver passar tanto e tão rapidamente, sempre a ver passar, a julgar-me idiota, em ocasiões, porque só via passar. A não agarrar nada, nem com a vontade nem com os mãos. E todos a acenarem e eu na incerteza de que estariam a meter-se comigo, eles também a passar e a passarem por eles. Depois desse fluxo torrencial e fugidio, aceitei ser tutor de duas galinhas poedeiras, e usufrutuário de um pequeno terreno agrícola que tem no seu inventário três oliveiras, um limoeiro, uma laranjeira e o que julgo poder chamar-se uma clementineira , mas não arrisco certezas. E flores, abundantes e diversas, que até sermos devidamente apresentados, não lhes sei o nome. Hoje é o dia em que deixei de ver passar: consegui ser admitido no Jardim das Delícias. Passado então para o outro lado, vejo-vos agora a passar, no portão de entrada do meu novo jardim. Aceno

O CONVIVIO DA ALDEIA

  Nos domingos, nas aldeias destes interiores, o silêncio ouve-se ainda mais que nos outros dias da semana, intervalado pelo canto dos pássaros, ao despique, sendo na primavera, e sem contrapontos quando o outono vai preparado o mundo para a grande noite do inverno. É quando os velhos, que é um nome muito mais respeitável que idosos, vão ao Convívio na bela aldeia de Ana de Aviz. As senhoras, ainda com vaidades, arranjam-se para sair. Os homens, mais arredados dessas coisas da compostura, vão como estão, como andam todos os dias. A boina, ou boné, é que não podem faltar e no jeito de os pôr na cabeça, ora enterradas, ora simplesmente deixadas cair, pala para o lado ou inclinada, são essas as suas vaidades, que dizem muito sobre quem a usa. O Convívio tem no rés-do-chão, uma biblioteca com livros de temas variados, até enciclopédias. Como não é frequentada, os livros provavelmente deprimidos por não receberem ninguém para os folhear, desleixaram-se, descompuseram-se, descaindo das

O PROFESSOR

Como um aventar discreto, que mal se apercebe, que vai e volta, um sopro ínfimo que ainda assim refresca, neste caso, as recordações que se apresentam trazidas de uns confins, interior nosso, por esse vento quase não vento que é o nosso pensamento. Por vezes são partes incompletas, que pedem paciência e um labor de filigrana, para revelarem essa pequena história do passado. Outras, são tão vivas e completas, como se fossem de ontem, revelando nesses fotogramas que afloram ao nosso pensamento, episódios de pessoas que já não estão cá num volume a três dimensões, que habitam agora permanentemente a nossa casa interior. Extinto o corpo, a sua substância colou-se a nós, forra-nos. Os que chamamos de nossos, são os de sangue e todos aqueles que adoptamos com a grande naturalidade de serem escolhas evidentes. Aprendi a ler e a escrever com uma caligrafia bem desenhada e contida no espaço das linhas paralelas que pautavam as folhas da escola primária. Nas palavras, fui polido e cumprido

Vá para fora, olhando para dentro.

  No verão podemos divagar e flautear a cabeça nas coisas sem peso, acompanhados, e a pedir, pelo corpo que reclama lassidão, descompromisso, prazeres do momento. São os dias alongados, quentes, o tempo das férias, os dias em que os relógios do tempo fingem que se detêm, para os praticantes das artes da preguiça. No verão, o país debruça-se em fila num beiral a olhar para o mar, antes de pôr os pés de molho nas praias que lhe desenham os contornos. Dão costas ao que resta do país interior, que é a maior porção do país. E no interior, para quem conhece os segredos e tem curiosidade de procurar, também há praias para refresco dos pés. Casal de São Simão é uma aldeia de xisto, no concelho de Figueiró dos Vinhos. Reza a lenda (as lendas são as realidades oníricas que dão densidade aos lugares e as pessoas) que um casal de passeantes a descobriu, em ruínas, e comprou uma casa que renovou. Chamaram os amigos que compraram outras casas e agora é uma pequena comunidade de amigos, com um

AO SUL

Em tardes calmosas, Cativado pelo cântico repetitivo dos grilos, Sonho, Que sou um poeta andaluz Sentado na muralha no cimo da colina, A sonhar versos. Colorindo-os com as cores intensas Que fazem os finais de dia, Quando o sol se põe na ténue linha do mar, No outro lado da Ria Formosa. Os pescadores de ostras no seu afazer curvado, Não dão conta da minha presença, Nem sabem que estou a navegar versos, Ao Sul, nas tardes calorosas desta felicidade, de que são feitos os meus sonhos. E deixo-me estar, Imaginando epopeias utópicas e doces, Esperando que a noite me venha embalar.