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TAMBÉM SOU BASCO

  Fugi porque tinha uma ferida aberta, sangrando muito. Uma traição, provocada por uma paixão que foi um vendaval, que levantou telhas dos telhados, pedras de calçada, vasos com flores. Remoinhos incontrolados que me viraram do avesso e assim fiquei, até que nasceu uma pele nova, e pude continuar a viver. Dizem que um ama e o outro é amado. Talvez seja verdade, continuo sem saber, não acredito muito em vaticínios alheios, prefiro a experiência pessoal. Fugi, porque a cidade e os transeuntes para sempre anónimos e que nunca virei a conhecer, asfixiavam-me com o seu andar inconsequente pelas ruas, apoderavam-se distraídos do ar que eu precisava para respirar e gritar a minha dor. A cidade ficou pequena para nós os dois. E então, sai. Fui o mais longe que pude: mil quilómetros, nada mal. Cheguei nos finais do mês de Setembro, num dia de grandes e trágicas inundações, e não conhecia ninguém, não sabia o nome das ruas, não conhecia a língua, nem dizer a palavra inundações, e chegava n

MÚSCULOS

  Fui sempre um trinca-espinhas. Com pena própria, pois  gostaria de ter sido um Adónis, um Apolo, um Hércules, um Silvester Stalone (só o admirei no primeiro filme, era adolescente e não me apercebi que ele era um bronco, sou mais tarde), musculado, imponente e belo, fosse de que Olimpo fosse. Era isso que eu queria, mas a natureza não me fez assim. Em catraio, ingeri a contragosto, lembro-me disso com algum enjoo biliar, a farinha trinta e três, um « alimento saudável composto unicamente por ingredientes naturais: amido de milho, farinha de trigo, amido de mandioca, açúcar, cacau puro em pó, dextrose e vanilina. E um sabor a chocolate que continua a deliciar todas as gerações», seguindo a indicação da bula que nem sequer contesto, mas a minha mãe e a minha avó recomendavam vivamente (não havia alternativas). Quando conclui, a custo e à custa, que não saia vencedor -nos intervalos na escola primária -, das questões resolvidas a murro e pontapé (os grandes, só de os ver desistia l

QUEIJINHOS FRESCOS

 Não sei se já vos contei a história do epílogo épico (depois desse episódio não a vi mais), da minha tia Belarmina. Era uma mulher excêntrica, se bem naquele tempo não usássemos essas palavras para descrever personagens que por alguma razão tinham comportamentos despirolitados que levam à risada mas também a situações embaraçosas. Se a sua preocupação fundamental não fosse inventar estratagemas para pôr, todos os dias de preferência, comida no prato, poderia ter sido artista. Comediante talvez. Casou com um dos irmãos mais velhos, do meu lado materno, e o seu marido, um festivaleiro de gema, esgotou num pestanejar de olhos as suas fichas existenciais, em tertúlias até às tantas, casas de pasto e de fado, touradas e largadas na Moita e no Montijo, sendo que o mais longe onde se deslocava era a Vila Franca de Xira. Claro que tinha apontadas na sua agenda mental as festas populares e os arraiais dos bairros de Lisboa, sendo conhecido de todos , e sempre bem recebido. Era um bom homem.

A BELEZA DE PALAVRAS BANAIS

Estende-se a palavra na folha de papel, e salpica-nos em novidades. Todos os dias sinto esse espanto, emoção primordial da união das palavras, que sem se saber como nem porquê, redesenham significados que nem sequer desconfiava, harmonias criativas, num concentrado de emoção. É isso a arte, ao qual sou alheio como criador. O meu trabalho, menor, é estendê-las a seu gosto na folha em branco, e nesse esforço, que por vezes não é pouco, elas encontram os seus enamoramentos, os seus casamentos, construindo de um caos aparente, um edifício poético, revestindo de lantejoulas e brocados a sua nudez inicial. Quando isto acontece, recosto-me no cadeirão de molas chiantes, envolvendo-me como o faz uma planta carnívora quando encerra sobre a presa as suas pétalas, eu no tal cadeirão, tão confortável como usado, e fico-me a admirá-las, realizado e cheio. Depois, fecho o caderno e não incomodo a sua intimidade – serei sempre um estrangeiro no meio delas - para que no recato do seu sossego, prossi

REDES DE CIRCULAÇÃO INTRINSECA DOS ORGANISMOS VIVOS *

  Não há maior prazer do que este. Não há palavras, não há asneiras, não há educação, deseducação, não há cores porque são todas ao mesmo tempo, não há uma música, muitas, melodias empolgantes, o mais complexo e inebriante bailado a que já assisti…sim meu amor, unimo-nos e esta primeira vez foi o pináculo, o auge, o inatingível ponto, conquistado, em que irremediavelmente, depois deste instante que não se vai repetir em intensidade e prazer, começamos a caminhar na direcção do jamais atingível. O orgasmo dos orgasmos….   dois corpos distintos e individuais unem-se num jogo de entrelaçados e intimidades. Pode ser a primeira vez que este encontro acontece com estes dois corpos. Numa organização, que se pode situar algures, mas sem certezas, nas cabeças em que estes dois corpos culminam, talvez seja aí, nada é certo, foram dadas essas ordens. Com uma frieza e racionalidade de máquinas. Como um centro de controlo de uma grande central energética, onde técnicos muito capacitados, olhando co

O LEITOR ATENTO

Costurava bilros com as palavras. O que para outros seria complicado, ele fazia-o com naturalidade. Não era um homem com estudos, se com isso se considerar a obtenção com maior ou menor esforço de diplomas e anos de resiliência, a aguentar os currículos bafientos e desinteressantes e os professores desmotivados, que não têm outras opções senão irem até velhos e depois, chegados aí, morrerem ou ficarem rapidamente apatetados e infantis. Moldou-se a si próprio. Aprendeu a compreender as palavras e depois estudou-as sozinho. No falar, foi uma pessoa contida, por natureza própria, e por essa característica sua, não necessitava de muitas palavras, as que usava no dia a dia, usava-as com segurança de quem sabia o que estava a dizer. A sua criatividade deixava-a fluir na escrita, a rédea larga. Não escrevia com nenhum propósito literário, e nunca teve sequer intenções de tentar uma novela. Era trabalho a mais e quando chegasse ao final, se chegasse ao final, já estaria cansado dos personagens

DIA CHUVOSO

    Onde andam os meus, que já não habitam a casa onde moro? O Mário, a Maria? O António, a Amélia? Onde estão eles? O Albano, A Custódia dos olhos de mel? A Florinda do olho de vidro? A suave Silvina? O Virgílio, comediante sério? De alguns, os ecos são longínquos e quase inaudíveis. O Américo, a Lurdes, o Carlos que cantava canções de amor? O Carlos, menino eterno da Terra do Nunca? Distingo algumas vozes, outras esfarelam-se no pó do tempo. Há rostos deles, bem desenhados e completos; outros que são nevoeiro. E o Jorge tranquilo e demasiado prematuro? Onde andam os meus nesta casa nova que não conheceram? Andam comigo, eu trouxe-os, mas alguns já mal os sinto. E não queria. Estão todos nos fiapos das recordaçõs. Salpicam intermitentemente o meu quotidiano quando emergem, sem pedir licença, na espuma dos meus dias, para se afundarem de novo nos labirintos da minha memória. O mês de Dezembro é um mês cruel. Tem uma cratera aberta no breu da solidão. E não tem