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Mensagens

ESTE É PARA TI

Fazia frio. «O menino não tenha medo que não fazemos mal ao seu paizinho». O menino não sabia ainda se tinha medo, só estava perplexo a ver o seu pai ser lavado por uns senhores de fato tão negro como se pintava ainda essa noite. Fazia frio e escuro. O menino, tão menino ainda, sabia ao que eles vinham: encarcerar o pensamento. E se era por isso que eles levavam o seu pai, ocuparia ele o seu lugar, o lugar da cidadania. Pai não te preocupes eu faço o trabalho por ti. Ao fim da manhã, vindo da escola primária onde os meninos estão também separados das meninas por um muro, a caminho de casa na rua soldados da India, na parede branquíssima a perder de vista, o muro dos Altos Estudos Militares, ele vai pintar em vermelho veemente, uma foice e um martelo. Os senhores carvão que gralham como corvos não podem levar o menino, e ele sabe isso, e ele aproveita-se disso, não podem encerrá-lo numa cela escura. Se o fizessem ficariam sem meninos e um país sem meninos não existe mais. Perde-se o fu

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

O NATAL DO TIO VIRGÍLIO

  O tio Virgílio, que nunca soube da existência do poeta clássico romano e ainda assim conseguiu sobreviver e atingir o seu patamar de felicidade, era bombeiro na Companhia Reunida de Gás e Electricidade, nas bandas orientais da cidade, hoje um quarteirão moderno. Nunca apagou nenhum fogo, mas sempre que soava o alarme, conseguia vestir-se a tempo apesar da sua barriga, desproporcionada para a profissão de bombeiro, se bem nesses tempos, as exigências serem outras: um bom bigode, bem retorcido e colado nas pontas com brilhantina, e um ar sério e carrancudo, eram as condições de admissão.  Como não exercia a sua profissão, dedicava-se ao comércio de import-export. T inha boas relações com os das ambulâncias postais dos comboios, e dinamizava o negócio entre Espanha e Portugal. Caramelos, torrão de Alicante, bonecas sevilhanas, castanholas, mercadorias afins. O Tio Virgílio era nas festas natalícias, o responsável por amassar a massa das filhoses, trabalho a que ele dava importância, com

PAI NATAL

  Dávamos as mãos e lá íamos, pela rua Morais Soares abaixo. Eu pequenote, o mundo ainda a parecer-me maior do que é, imenso, eu minúsculo, percebi logo por essa desproporcionalidade como iriam ser as coisas no futuro. Era o passeio do ano. Da porta de casa ao início dessa rua cheia de movimento e lojas, atravessávamos o muro, alto, do cemitério do Alto de São João, o silêncio dos mortos, semi-obscuridade, eu cheio de medo deles, não sabendo que estando mortos não me podiam fazer mal, só os vivos. A Morais Soares, no sentido de quem ia, o nosso caso, é sempre a descer, e aos meus olhos poderia muito bem ser a Hollywood Boulevard , que eu ainda não conhecia, mas é a melhor comparação que me vem à ideia. Várias faixas de circulação automóvel, para cima e para baixo, as lojas iluminadas de tudo: camisarias, retrosarias, talhos, mercearias, casas de pasto, artigos indiferenciados, uma garagem automóvel, um mundo. Julgava que essa rua nunca mais acabava e que era a maior rua da cidade. Quan

A MINHA TIA

Ela costurava. Dia e noite, costurava sem parar. Costurava e sorria e dizia na sua maneira coisas bonitas e Amor. Fazia-o sempre que a visitava, devia continuar a fazê-lo mesmo quando eu não a visitava. Porque o fazia e parecia sempre feliz, quis imitá-la, também queria ser feliz. Comecei a escrever, por achar nessa idade ainda prematura para achar, que escrever era o que mais se aproximava a costurar, que poderia ter sido uma opção válida, mas escrever também não estava mal. Dei-me agora conta que está a passar na televisão o Natal dos Hospitais. E com esta imagem, em que temos estado descansados um do outro, ela emerge, toma conta da minha memória. Era o seu programa favorito do ano. Costurava sem pôr os olhos no ecrã pálido de cores fortes. Anunciava com segurança e sem erro os nomes dos artistas e cantarolava os seus êxitos. Eu, por ser miúdo e gostar dela, fazia deles os meus artistas favoritos, e como nunca tive jeito para cantar, e costurar parecia-me dificílimo ganhar o ritmo

O TORRÃO, PRINCIPES DE COISA NENHUMA

E seria um local belo se ela não tivesse de se levantar todos os dias da vida, as três e meia da manhã e passar o rio para a outra margem, quase um mar, e quatro transportes e correr sempre, para os apanhar, para apanhar com uma ponta dos dedos, sempre a escapar-lhe, uma existência miserável, não fosse a vontade de fazer crescer os netos-filhos do sufoco de uma existência assim, sem dignidade de cara lavada. Todos os dias, entre as seis e as nove para pôr a brilhar o chão da grande superfície, que lhe espreme as margens da subsistência, como faz ao produtor de batata, também desgraçado, vida dura a sua, para ganhar tostões. Podia ser um sítio belo de viver, se as crianças tivessem tectos onde não chovesse e boas janelas que impedissem as humidades e os frios a tomarem conta do espaço exíguo onde dormem tantos com tão pouco. E se houvesse água e electricidade e esgotos e as ruas não fossem pistas de lama e as crianças pudessem levar os sonhos até serem grandes, e tornar alguns ver

HÁ OU NÃO BALEIAS NO CÉU?

  Não há baleias no céu, ou então há, desde que se queira. Vira-se tudo ao avesso, sendo as mesmas quantidades de azul, passa-se o mar para o que está em cima e o céu para o que está em baixo. Quem não consegue imaginar um cenário destes, e acreditar na sua veracidade, é tolo, e nunca conseguirá dizer e ser credível, um poema simples e belo, tenha ou não a métrica certa. Nem a métrica o salva. Há, sim senhor, baleias que navegam nos céus e partilham o mesmo espaço de liberdade com todos os pássaros que venham por bem. Se não vierem, seja no céu ou em que meio for, o melhor é ficarem aquietados. Enquanto andamos nisto, passa neste preciso instante, não é mentira é a mais pura das verdades, estou a vê-lo, uma baleia voadora. No céu, à frente destes que a terra há de levar com pena minha, vejo-a a partir da janela do quarto onde tenho uma mesa em frente dela e escrevo coisas. E passa com a maior das bonomias, até parece que sorri, na comissura dos lábios enormes que tem. Afino a focag