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Mensagens

CEMITÉRIO ISRAELITA

  Vejo um cemitério onde, sem mais movimento humano do que dois homens, em silêncio, jogam as cartas. Atiram-nas e biscam-nas numa laje fria, revestida por caracteres desconhecidos e ocultos talhados em sulcos profundos. As lajes todas idênticas, perfilam-se criando simetrias perfeitas no espaço do jardim. Os homens encontram-se protegidos do calor intenso, pelos ramos exuberantes de uma árvore antiga, solene como o cenário e como eles, jogadores pagãos, que executam o ritual das cartas como se estivessem a praticar um acto de grande espiritualidade. A incongruência desta cena, que pode parecer chocante, uma heresia, dilui-se na atitude circunspecta, contida, dos jogadores. Dois amigos. Um, numa ambulância postal, ultima carruagem do comboio, entrega o correio na fronteira do país vizinho dilacerado por uma guerra fratricida e absurda. O outro é o coveiro desse cemitério. Vieram os dois, um dia em que eram jovens, de um algures no interior. Pontos sem nome nem localização geográfica.

UMA IMPRESSÃO

  A mãe contava inapropriadamente, deixando-o embaraçado, que o parto tinha sido difícil. Ela a morrer esvaindo-se em sangue, ele sem respirar, muito tempo, arroxeado já, até que lá se deu autorização à vida, para aproveitar essa oportunidade, a de viver, uma lotaria que calha a muito poucos. Tenha que efeitos tivesse tido essa anoxia no seu futuro e em situações bem específicas em que precisava do oxigénio todo para decidir o melhor, a ideia atroz e muito injusta, de ter sido quase o responsável pelas perdas anormais de sangue da sua mãe, fizeram-no como se veio a fazer nem muito nem pouco encorpado, o suficiente, e ainda bem que não deu para a misoginia, uma enfermidade crónica e de mau prognóstico. Sobreviveu e resolveu a questão considerando que a sua mãe era fraca a julgar o carácter dos outros, ainda mais o do seu filho, que não tinha culpa nenhuma na sua perda de líquidos vitais. As coisas foram correndo e nunca mais se lembrou desse episódio do qual nem sequer teve uma me

FURÕES

  No meu círculo de amigos todos sabem que sou companheiro de um cão – dividimos até casa - que se chama Senhor Darwin, cão inteligentíssimo, mas quem não o apregoa dos seus, sejam eles cães, gatos, coelhos e agora parece que estão de moda, os furões? Dando a entender que a conversa era para ir no caminho do Senhor Darwin, não, as nossas intimidades existenciais são e continuarão a ser só nossas. De quem se quer falar é dos furões. Fiquei de pequeno com a imagem, de ouvir histórias dos caçadores, que os furões para além de animais muito combativos e ferozes eram proibidos de usar nas tocas por obrigarem os coelhos a saírem e serem apanhados, de uma forma muito pouco digna para o coelho, já que nem sequer lhe dão a oportunidade de se por a correr que nem um doido e assim, talvez, conseguir fintar a pontaria do caçador e muito menos serem apanhados pelos cães, que com excepção dos galgos ficam com a língua de fora enquanto os coelhos os rabeiam a seu belo prazer. De galgos não vale a pen

"CAN'T BE A RHINO ANYMORE" - PAULO ROBALO - Exposição Galeria Monumental Mai/Jun 2'021

Quando não se dão carícias aos croquetes dos senhores, quando o apelido não verga reverências, quando não se senta na primeira fila dos discursos que babam para os babetes, chegar aonde for para chegar, é um caminho de pedras e murros traiçoeiros no estomago. Chegar à galeria Monumental, em Lisboa, com uma exposição individual, é uma sensação de sabor doce. Depois do caminho vencido, pode-se olhar em panorama e a vista é boa. Sinto essa coisa estranha de definir, que pode ser um cheio em mim.. Como tu Paulo Robalo agora estás a sentir. Sem te perguntar, porque sei que não preciso. Dizem que os gémeos sentem as mesmas sensações e nós somos irmãos e gémeos com cinco anos de diferença, sem que nenhum de nós veja nessa diferença um impeditivo de sermos gémeos na mesma. Apesar de te teres ausentando só por uns momentos breves, estás quase a voltar e um dia destes, de braço dado e pimpões, vamos ver a tua exposição e dar de caras e abraços com os que gostamos e nos gostam, todos, ansiosos

CEUTA 2021

  Não sabem o que os espera e o que os espera não é bom. Não há fugas bem-sucedidas para a liberdade. É um logro andar atrás dela. Escapa-se sempre que batemos à porta. Procurando-a – são jovens, impetuosos – vagueiam sem norte, vão ao engano. Arriscam tudo, até a vida. Iludidos pela esperança, a grande hipnotizadora. Venderam-lhes caro prospectos de publicidade falsa com imagens coloridas. Essas imagens não existem. Não há paraísos na Terra, só nas cabeças das pessoas. Não venham, não há um lado bom e um lado mau. Este lado tem tantas coisas más como esse. Será mais confortável mas para poucos. Muitos de nós se tivéssemos onde e como, também partíamos. Não venham, mas se vêm, fazendo frente e coragem a trabalhos incongruentes e cruéis, qual Hércules, um menino de contos, é porque aí não se está nada bem, para vos levar a um acto desesperado, vencer mares e muros, e tantos a ficarem pelo caminho, feito de desertos inclementes e águas traiçoeiras. São tão altos os muros e fica-se tant

QUANDO FUI PAPA

  Começo a tropeçar nas memórias. Do nada, saltam-me à frente. Reencontros agradáveis, ou nem por isso. Umas aparecem coloridas, outras e preto e branco. Talvez se tenham desgastado entretanto. Lembro-me dos primeiros anos, era Páscoa, efeméride pesada, soturna, triste, que custava a passar. Não sendo praticantes regulares eramos reverentes. No ambiente da época era o mínimo que se devia ser. Menos era infração. Nos dias que antecediam a ressurreição, fenómeno que eu muito admirava pela sua excentricidade e desfecho positivo, as pessoas ficavam ainda mais sérias e reservadas. Em casa, as refeições eram ainda mais frugais. Não se comia nem carne nem peixe, só bacalhau. Para a minha avó que estagnou numa forma repetitiva – cinquenta anos pelo menos – no peixe frito com arroz de tomate, a imaginação congelava-lhe nesses dias e ela só cozinhava arroz de tomate. Domingo era o grande dia, do anho no forno, mas até chegarmos lá! A emissão televisiva a dar os primeiros passos, já de si muito l

O HOMEM QUE REINVENTOU A ESPERANÇA. ROTEIRO DE UMA CIDADE LIVRE

  Noite agradável. Na parada militar, perfilados, aguardam. Ouve-se Grândola, Vila Morena num radio que amplifica o som da fraternidade nas paredes que envolvem a parada. Duzentos e quarenta homens, saídos de serem meninos, comandados por um oficial com 29 anos, sorriso rebelde, olhos curiosos, partem para Lisboa. Vão libertar a liberdade. No Campo Grande, à cidade universitária, cinco da madrugada, a coluna para nos semáforos. Vão fazer uma revolução e param nos semáforos. Às 05h45, tomam posições no Terreiro do Paço. Forças do regime defendem os ministérios. O jovem capitão, sente na cara tensa, carregada de adrenalina, o afago da brisa fresca que vem do rio, a dar-lhe confiança. Vai nascer um dia luminoso. Na concentração que tem em si, não ouve as gaivotas pousadas no Cais da Colunas. Dão-lhe boas-vindas. Dizem para não ter medo. Não era preciso dizerem, este homem não tem medo. O Terreiro do Paço é o eixo de um império irreal. Onde estão os ministérios, onde o regime sonha a