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O HOMEM QUE REINVENTOU A ESPERANÇA. ROTEIRO DE UMA CIDADE LIVRE

 


Noite agradável. Na parada militar, perfilados, aguardam. Ouve-se Grândola, Vila Morena num radio que amplifica o som da fraternidade nas paredes que envolvem a parada. Duzentos e quarenta homens, saídos de serem meninos, comandados por um oficial com 29 anos, sorriso rebelde, olhos curiosos, partem para Lisboa.

Vão libertar a liberdade.

No Campo Grande, à cidade universitária, cinco da madrugada, a coluna para nos semáforos. Vão fazer uma revolução e param nos semáforos. Às 05h45, tomam posições no Terreiro do Paço. Forças do regime defendem os ministérios. O jovem capitão, sente na cara tensa, carregada de adrenalina, o afago da brisa fresca que vem do rio, a dar-lhe confiança. Vai nascer um dia luminoso. Na concentração que tem em si, não ouve as gaivotas pousadas no Cais da Colunas. Dão-lhe boas-vindas. Dizem para não ter medo. Não era preciso dizerem, este homem não tem medo.

O Terreiro do Paço é o eixo de um império irreal. Onde estão os ministérios, onde o regime sonha acordado mas totalmente ébrio com quimeras incompreensíveis. As fachadas da praça estão sujas, desbotadas, cores indefinidas. As paredes cascam.

O capitão oferece o peito e a vida à mira de um canhão de blindado. O cabo que opera o canhão desobedece ao mando feudal do oficial, não dispara, e barrica-se dentro do blindado. Este acto de um cabo sem nome e a coragem do oficial, são os momentos que validam a liberdade. A partir desse episódio, singular, poético, os acontecimentos já não podem voltar atrás.

É o instante em que o país desperta de um coma induzido.

12h00. Ao início da tarde, depois da fuga dos ministros do regime por um buraco aberto na biblioteca de um dos ministérios, rastejantes, baratas, a coluna da Escola Prática de Cavalaria, atravessa a Rua Augusta, sobe a Rua do Carmo, o povo a acompanhá-los. As lojas estão encerradas. Estão todos na rua. Tão feliz está o povo. A Esperança ocupa o Largo do Carmo. No quartel dos guardas medievais e fardas patéticas, refugiou-se o Presidente do Conselho.

O jovem capitão sobe para uma das viaturas, com um megafone na mão, anuncia que vai dar uma rajada de metralhadora sobre o edifício.

Que se rendam.

Ouvem-se tiros, e gritos e choro. De crianças? Não são crianças. Os guardas dentro do edifício choram de medo, não querem morrer, rendem-se. O capitão avisa que vai entrar e demitir o presidente.

É primavera, a temperatura está amena, mas o céu continua encoberto, não se viu ainda o sol, os tons de cinzento dão o tom ao cenário da cidade, pode ainda vir a chover, ou desanuviar. Pode ser que haja sol.

Fecha-se a porta pesada e rangente e o capitão atravessa um corredor cavernoso, numa penumbra ácida. Vai convicto. Percebe no peso do silêncio que se interrompe pelos gritos da multidão, lá fora, o ruído de uma cascata de água. Uma bala furou o reservatório, a água cai na caixa do elevador. O que resta do regime na sala militar do quartel do Carmo, borrou, mijou nas calças de fazenda fina, dois ministros, choram num canto. Para onde foi a arrogância? O Presidente, descomposto, na pouca dignidade que pode ter. Demite-se.

O capitão sai a anunciar, cantam o hino. O povo inteiro de um país veio ver a revolução num pequeno largo da cidade. Os pombos, habitantes naturais do lugar, estão igualmente felizes. Uma flor, humilde, tímida, pouco vistosa, vermelha, que uma vendedeira apregoava a venda, é colocada no cano da espingarda de um soldado, imaculado soldado, deitado na calçada fria em posição de pontaria mal sabe ele a quê.

Fez-se o símbolo. Uma revolução dos cravos. O dia alonga-se, o tempo estica as horas e os minutos, há muita coisa por resolver e tem de ser resolvida nesse dia.

 Sabe-se, notícia triste, que os polícias abutres mataram quatro inocentes, na António Maria Cardoso. Como pode alguém viver agora nesses apartamentos de luxo? Ouvirão à noite nos dosséis com lençóis de seda, os gritos de dor e tortura dos fantasmas dos homens de carne e osso que foram presos nessas masmorras? Presos por um pensamento? Por uma ideia?

20h00, a coluna militar escolta o ditador derrubado. O capitão sobe a avenida da Liberdade, ampla e provinciana. A cidade não é ainda cosmopolita, não tem lojas caras, nos apartamentos dos prédios mal cuidados vivem pessoas comuns, nos escritórios trabalham pessoas comuns.

As árvores e flores, por vontade sua e numa decisão muito louvável, abrem-se em flor e não fosse um cepticismo da ordem do racional, dir-se-ia que floriram para o capitão e os seus jovens camaradas, animando-os a subir a avenida da Liberdade cheios e seguros de si, na confiança de serem protagonistas do acontecimento que vai mudar a história de um país.

Amanhã, há tanto ainda por fazer. Tudo.

No dia seguinte, depois de limpar a cidade dos corvos e das gralhas, o capitão, regressa anónimo para o seu quartel em Santarém e não tem ninguém a recebê-lo, as ruas estão desertas, não sabiam que ele vinha.

O capitão da Esperança, chama-se Salgueiro Maia, voltou a ser anónimo. São assim os heróis, os seus actos e os seus feitos são imperativos da moral e do sonho que germinam no coração e quando florescem, dão flores orgulhosas e coloridas para deleite de todos.

A cidade está deserta Salgueiro Maia. Vem.

 

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